sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Profundezas desconhacidas.

 

     (...) E então, ele driblava com seu cavalo o gigante guardião que vigilante se colocava à frente da entrada daquela cúpula branca. Era uma clara manhã de verão, mas as luzes naturais foram se enfraquecendo gradativamente, e o herói, agradecendo, despediu-se de Ásirus. Estava novamente sozinho; agora bastava apenas acionar o redondo elevador para descer rumo ao inexplorado. Era como que dia de folga para o homem, e as incursões e estratégias feitas à terra não evidenciavam qualquer presença dracônica. Seguiu em paz, contando, já em enfado, os minutos de descida.

     Foi exatamente por isso que deixei esse lugar intocado até agora. Com toda a certeza dos Deuses o amigo da corte iria enxergar diferença nessas mesmas e chatas pedras que alicerçam a parede dessa gruta...

     Conservar consigo as roupas de seu povo de origem era como questão de honra para o cavaleiro. Aquilo unia para ele tanto proteção quanto símbolo, e, logicamente, o homem petulante discorreria mais sobre tal atitude, ratificando as comparações. Uma bandana de tecido áspero envolvia-lhe a cabeça, oferecendo proteção contra chuvas e jornadas longas. Simples, porém firme, ajustava-se à testa, absorvendo o suor e lembrando que o combate começava muito antes do primeiro golpe. Sobre seu ombro esquerdo, uma ombreira com contornos estilizados descansava, moldada para absorver impactos e ainda assim permitir liberdade de movimento. Cada articulação, cada dobra, parecia feita para não atrapalhar o balanço de um machado comum que ele empunhava com a destra. Tiras marrons como braceletes entrelaçados envolviam os seus antebraços, e uma calça segmentada com coturnos de mesmo design da parte superior concederiam aos portadores um aspecto selvagem. Ajudando-o a lembrar-se de casa, em poucas ocasiões modificava tal memória.

     E ali, certo das futuras condições que iria enfrentar, considerou mexer na armadura. Vestiu-se de camisa e calça compridas, trabalhadas em uma singular e leve lona encerada, que impediria quase 100% a entrada de água. Calçou também botas de couro encerado, a fim de maior furtividade e flexibilidade em contextos como aqueles, apesar de perder uma certa resistência a impactos grandes. Optou por não usar luvas, pois vagando por locais fechados suas mãos podiam suar. Assim partira desde sua última parada, em uma igreja em ruínas perto dali. Repassou as estratégias, treinou rapidamente com adversidades pelo caminho, e mediu as distâncias mentalmente, conservando de sua indumentária antiga a bandana de tecido escuro.      

 

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     Finalmente, alcançou o piso térreo! O cenário era fechado, com um trecho de rio não muito largo que entrecortava uma caverna. Formigas imensas, do tamanho de dois ou três homens, infestavam as paredes. Olhou para sua mão esquerda, e bastou um sopro de fogo em 360 graus para que todas caíssem como animais inofensivos. Algumas se levantaram depressa a fim de atacar com seus ferrões e venenos ágeis, mas a lança do viajante, ainda que sem reforço algum por pedras de forja, estava sempre pronta.

     Tinha duas rotas possíveis: a da esquerda ou a da direita. Apesar de o lugar conservar-se em escuridão, optou por não usar a tocha; pois a luz poderia expor segredos que ainda deviam ficar ocultos, e o tremular das chamas poderia despertar perigos adormecidos. Ele então se abaixou devagar e procurou ouvir o som do rio, com cuidado para não molhar sua orelha, uma vez que tinha dúvidas a respeito da pureza da água. Estimou que levaria tempo até alcançar a foz, e ainda a contar com os inimigos e mais formigas que poderiam surgir... aquilo iria demorar.

     Continuaria para o Sudoeste — onde os insetos descansavam à parede —, mas logo virou seu corpo e foi para a direção oposta, pois monstros poderiam emboscar o homem caso ele rumasse sem pensar para o caminho “natural”.

     Margeando as águas, avistou um palco mais largo e circular, que continha uma espécie de cachoeira no fundo. Não obstante, arremessou para frente três de suas facas que levava ao cinto e esperou: .... Nada aconteceu! Porém, certo de que algo estaria ali, com um sopro de fogo incendiou uma parede lateral, protegendo-se com escudo e pulando para o lado enquanto isso. O pequeno salto levantara algumas águas, o que não foi uma boa estratégia, mas o mesmo movimento fez cair uma solitária formiga que lá vigiava. Curioso, e agora mais tranquilo, aproximou-se da pequena cachoeira, pois algo em seus padrões parecia não ser tão banal como uma queda d’água comum. E o item que lhe estava ao lado podia confirmar tal hipótese: já tinha visto algo similar em suas andanças.

     — Que ótimo, um sebo mágico... — ele ironizou, perguntando-se se, com aquele dado, teria ânimos para continuar.

 

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     — Siga em frente. — Eis que o cavaleiro pode escutar uma voz misteriosa que parecia ecoar das águas que jorravam daquela parede. Em suas andanças, ele topou com similar fenômeno uma outra vez, em uma região que estava gravada em sua memória tal como o Sol é inerente ao dia. Caso, lamentavelmente, não tivesse passado por aquilo, não teria como o herói prever do que se tratava; e sua repulsa à magia e a qualquer coisa que parece “não digna de vitórias” iria fazê-lo retornar de vez à superfície e abandonar aquelas rotas escuras e desconhecidas. “As formigas são apenas o primeiro desafio. ...De certa forma, que bom que existem mais por aqui.” Ponderou mais uma vez sobre qual desafio cumprir, mas seguiu em passos silenciosos às profundezas.

     Os mesmos insetos enormes faziam ronda pelas galerias que se bifurcavam atrás dele. Esperando a patrulha das pragas passar, entrou e saiu da grande abertura ao sudoeste, o que revelou uma pequena emboscada à direita. Assim que as outras operárias voltaram, ele já estava pronto com sua lança. Margeava agora a bifurcação mais adiante, à esquerda, e... novas duas ameaças que corriam na horizontal, e mais outras que caíram do teto com o propósito de cercá-lo numa armadilha viva. Optou por não usar seu poder dracônico desta vez, e treinou seus golpes e destreza. As duas que estavam no chão foram fáceis, mas uma outra que vinha de cima em uma parte mais escura inoculou veneno em suas vestes. No entanto, rapidamente curou-se com um kit rápido de sobrevivência. Gastou mais uma de suas facas, mas pegou o tesouro que as aberrações guardavam: três pedras para reforço de armas.

     — Como se precisasse... — ele se recriminou por ter “ido até lá só por aquilo”; mas, de certa forma, elas poderiam segui-lo caso avançasse para mais além. Fora bom aquela pausa.

     Foi a hora de novamente “sentir” o caminho do rio, pensando se seguiria com a tocha, ou se continuaria vagando na escuridão. E então uma irresistível estratégia atravessou-lhe o pensamento: com um único sopro de fogo, poderia colocar o archote à frente como um escudo, e... o efeito logicamente seria de uma dedetização em massa. Se bem que apesar da agressividade e da eficiência do plano (pois, a depender da mira, o efeito se estenderia às galerias interligadas), o solitário homem desconhecia até que ponto o fogaréu criado seria prejudicial, voltando labaredas ao dono ou atiçando ainda inimigos a metros de distância; além de, sem querer, ativar uma ou outra alavanca pelo caminho.

     Persistia então no mesmo ardil, andando com cautela, e poupando recursos.

 

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     A partir dali, o local se transformava em um verdadeiro labirinto. Pelo menos, via nas voltas e mais voltas uma boa oportunidade para treinamento, e, mesmo que os inimigos já não fossem tão letais de acordo com a sua larga experiência, permaneceu ali. Ele jamais admitiria para si, mas tinha medo das magias que encontraria mais abaixo, e seus sentidos assim o privavam de cruzar outros níveis.

     Com coragem, avançava mais ao Sudoeste. E percebia que, conforme andava, fracos e espalhados pontos de luz denunciavam que alguém teria passado por lá (talvez tivesse sido recentemente, a julgar pelo brilho). Pôde identificar então ao chão algumas pedras esculpidas cuidadosamente de forma retangular, e o vão que faziam no meio indicava que ali caberia uma pessoa de pequeno a médio porte. As águas ainda perpassavam os túneis, mas o cavaleiro agora percebia que pilhas vermelho-escuras de esqueletos entrecortavam o cenário. Locomovendo-se com mais cuidado ainda, foi para uma abertura mais ao Sul, e encontrou: um novo e solitário adversário, que escondia rudimentares escadas de pedra logo ao lado. Seria a saída? Ou um convite para não avançar mais, talvez.

     Ponderando tal como ao começo da empreitada, pegou seu arco e flecha e subiu.

     Chegou em uma galeria circular, úmida, mas desta vez sem aquele tapete líquido que irrigava os ambientes embaixo. Finalmente, uma luz natural atravessava um oval buraco no teto, e estalagmites acinzentadas alinhavam-se harmonicamente com as estalactites que ali se ampliavam. Os conhecidos insetos gigantes infestavam as paredes, além de algo novo ser visto pelo cenário. Ao grande salão funcionava uma espécie de berçário, com as larvas fixas às paredes e crescendo em um ritmo bem característico.

     Protegendo-se com escudo, apontou suas armas para mais além, já buscando melhor caminho para percorrer 180 graus. Estava pronto e a uma distância que as formigas não o veriam.

     Estava tudo preparado e a vitória, mais uma vez, era certa. Contudo... olhou mais uma única vez para aquelas larvas próximas e... não teve coragem de fazer! A cena lembrou-lhe sua infância, e de como outrora se sentiu incapaz e indefeso diante das adversidades. Assim como ele, as pequenas ninfas não teriam aquelas preocupações, e não entenderiam porque estavam morrendo, tão cedo, sem conhecer a luz do dia ou abrir os olhos. Porém, tal escolha traria consequências, recentes ou nem tanto, como um ataque inesperado assim que o herói virasse de costas. Era um risco que correria, mas não podia quebrar o ciclo da vida de forma tão covarde.

     Admirou por mais alguns instantes a gruta, e voltou seus passos a fim de continuar a aventura no túnel ao lado. Que bom, os pais não vieram ao encalço do homem, e o destino fluiu como o rio.

     Avançando pelo túnel, percebia que as paredes escuras e cavernosas se iluminavam por brilhos tremulantes em azul-claro. A fina camada de água sob seus pés tinha chegado ao fim, anunciando também uma mudança de cenário. Uma espécie de portal em arco era evidenciado por uma bruxuleante pira acesa em mesma tonalidade das novas luzes, e duas estátuas podiam ser vistas de cada lado. A passagem elevava-se em dois lances pequenos de escada e conduzia até uma ponte à esquerda.

     Certificou-se de que não estava sendo seguido, e varreu com os olhos a área para se certificar que não havia inimigo algum escondido. Ele queria prosseguir, no entanto podia imaginar os reais adversários que encontraria lá embaixo, e toda a caverna agora parecia-lhe mais confortável. Um outro conhecido seu poderia comparar seus sentimentos à luz que se anunciava e à escuridão passada, olhando também para o parapeito que restava em uma de suas bordas, onde quatro estátuas parecidas evidenciavam o limiar e a separação dos opostos ambientes. No fundo, uma última fenda com um local de descanso.

 

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     Revisou os seus equipamentos e as suas armaduras, ajeitou o seu raro e transparente capacete imune à magia, e desceu em um elevador circular logo à frente.

     A comparar as descidas, a atual fora menos cansativa. Finalmente também, o herói se alegrou por ver ameaças diferentes, dessa vez com aspectos mais humanoides e alguns munidos de lanças e outros com pedras brilhantes. Não mais uma simples caverna, ali se erguia um grande e amplo salão, com compridas pilastras e estátuas de humanos gigantes ao fundo, e cachoeiras com espaços mais profundos atrás. O novo ambiente era para ser admirado em silêncio, porém, tão logo o primeiro homem viu o intruso, todos os demais ficaram agressivos e caminhavam por cercar o herói. Apesar de ser apenas um, ele tinha vantagem pois a horda dos novos inimigos era lenta e aparentemente frágil. No entanto, era só primeira impressão: os seus corpos eram feitos como uma mistura de barro e lama, oferecendo boa defesa física. A garra do dragão era eficaz, mas o sopro gelado revelou-se uma interessante estratégia: ao interagir com as águas do cenário, fez os adversários escorregarem. Evocou também seus goblins do Mundo Cerúleo, e de maneira decidida e firme não se rendia.

     — Por aqui... — Certificando-se de ter derrotado todos, foi buscar com tranquilidade as recompensas pelo caminho. Dedicou um tempo para readmirar a imponência das duas estátuas (pois eram notáveis pelos detalhes e ar de mistério, ainda que com postura de sábios e manuscritos ovais às mãos parecessem dizer “você não é bem-vindo aqui. Retire-se, por favor”). Pela física e temeridade, o cavaleiro posicionava um pouco para a direita, não exatamente na convergência dos dois olhares pétreos. Foi então que escutou uma voz muito provavelmente vindo de uma cavidade perto de uma planta brilhante com pétalas brancas. O triste balbucio líquido era inconfundível: uma silhueta feminina já conhecida; ninguém mais, ninguém menos do que a própria rainha que encontrara ao castelo de terras passadas. Feita como em vítima e com roupas que denunciavam uma recente exploração, Tânisa descansava parecendo ter previsto sua chegada.

     — Vibrações nas águas detectaram que alguém se aproximava, mas devo confessar que temia que não fosse o senhor, nobre viajante sem nome. — Deitada e com aparência fraca, tratou o homem com a mesma cordialidade exigida parra monarcas. Poderia sim estar ali na condição de prisioneira, capturada pelos inimigos de barro como refém de um plano misterioso de uma entidade adversa que visava roubar sua magia; ou então ter-se deixado ser pega a fim de atestar as habilidades do cavaleiro, uma vez que os infortúnios do tempo não a permitiram ainda comprovar. Incólume e distante da soberana, lembrou-se de sua proposta de combater ao torneio da primavera. Pelas contas do cavaleiro, aquela deveria ser já a terceira lua de combates, e os desafiantes poderiam estar ainda se engalfinhando como cães e gatos, pois com certeza a brincadeira tivera muitos adeptos. Sobre aquilo, ele acreditava que soubera sair do impasse com maestria e respeito, além de ser improvável que a mulher estivesse lá para refazer o convite e novamente implantar-lhe a dúvida. — Estamos diante dos portões da dinastia Uhl, importante império que governou estas terras desde tempos imemoriais. Seus soberanos não precisavam subir e à superfície para ver seus poderes e domínios se expandirem, e confiantes e estratégicos imperavam influências aos planos superiores resguardados pelo rio. Como qualquer reino da contemporaneidade, a civilização presava por hierarquias e regras claras, convertendo os exemplares do topo em seres sumamente respeitados e temidos. — O cavaleiro ouvia atentamente as palavras, e agora estabelecia à mente um paralelo com os demais impérios que tinha conhecimento. Todos almejavam a mesma coisa, maculando diferentes nações a um mesmo final: o extermínio era proporcional à glória. De tempos em tempos, sempre surgiam novos ideais que pensavam fazer diferente, mas que, aos olhos do viajante, não passavam de cegos rumando em direção ao abismo, para a mesma sede de poder.

     Ao que tudo indicava, Tânisa estava sozinha à gruta; mas a ideia de ter sido pega por remanescentes de uma linhagem de mais de 100 anos parecia estar em desacordo com sua intimidante figura. Se bem que as tais criaturas de barro não teriam resistido tanto tempo não fosse algo grandioso, e, assim como pedras reforçavam armas, vontades e planos outrora não realizados poderiam ter alimentado ecos de magia, e assim operar para que um caos antigo silenciosamente viesse à tona em um futuro próximo. 

     Como esperado, ele sondou os riscos da viagem e, parado tal qual as colunas ao redor, provou da sensação entre ir ou ficar. Certamente, a “prisioneira” acompanharia o homem caso o seu desejo fosse avançar ao desconhecido, pois sua fala passada deixou a entender que sabia mais coisas sobre a sociedade ancestral. Não seria prudente confiar na rainha, mas outro lado ela poderia servir de suporte contra uma ou outra armadilha mágica. Tendo em vista uma de suas recentes incursões, outrora conseguiu passar daquele dragão e pegar a chave graças ao simples ato evocar os goblins. Isso lhe dera mais atenção.

     — Desconheço o real motivo de estares aqui, mas posso ver que, certamente, os nossos fardos e visões se cruzam hoje por algo maior. — Usou similar tratamento cordial, porém reservou-se em não dizer nem o nome muito menos o status da mulher. Com uma frase que possivelmente lembrou-lhe algo conhecido, a bruxa das águas levantou-se sem ajuda. Após minutos de silêncios sepulcrais, formava-se ali uma improvável aliança.

 

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     E assim o grupo seguiu: rainha Tânisa na linha de frente, vigiada pelas duas evocações cerúleas do cavaleiro, e este privando-se por ir atrás, olhando estrategicamente para todos os lados. Corajosos, pegaram o acesso principal, e não um lateral que se punha à direita.

     Passavam por uma sala comprida e retangular, com paredes de mesma forma grandes e suntuosas. Provavelmente aquele era o átrio para se chegar a um outro anexo, talvez um pouco mais largo e comprido do que o antigo. Colunas encimadas por piras flamejantes em suporte de pedra davam à passagem um ar ritualístico, lançando sombras dançantes sobre as paredes.

     — Realmente... — A refém, que agora caminhava livremente à frente do trio, soltou um comentário possivelmente irônico. Com isso, os inimigos que estavam escondidos encurralaram os exploradores, mas que habilmente levaram a melhor sobre aquele novo desafio. — Realmente impressionante. Obrigado por me libertar, meu bom homem.

     O que a mulher visava com aquele “plano”, afinal? Era destra como o seu salvador, e rápida com as mãos. Observando, via-se que poupava suas artes mágicas para usar apenas quando necessário, e com fluidez portava um chicote que imobilizava os adversários e os mantinha longe, ganhando segundos preciosos em batalha.

     Vencida a adversidade, voltaram a permanecer somente à companhia das topicalizadas chamas do hall. Requerendo uma prova da momentânea lealdade, o herói acenou com a cabeça e a intrusa entendeu que ela deveria seguir sozinha, revelando assim inimigos pela área, enquanto o homem avançaria logo depois em maior segurança.

 

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     Sozinha então, desceu por uma escada curta que se abria em leque a partir do centro. O caminho do rio voltou a ficar mais espesso, e as paredes contrastavam as arquiteturas humanas e naturais. E o explorador observava tudo atentamente, protegendo-se à meia-luz da sala e atrás de seu escudo dourado que ajudava a repelir magia. Mesmo se a rainha pensasse em fazer algo, os amigos pétreos agiriam rápido.

     Respirações controladas, passos silenciosos, ânimos aflorados. Mais adiante, presa ao teto da ampla gruta, uma criatura branca com asas se desenrolou e, ameaçando os intrusos, atacava freneticamente com uma chuva de pedras. Tânisa foi pega de surpresa, mas enfim revelou seus verdadeiros truques: ergueu ali quatro colunas de água, que ao ritmo de seus pés giravam tendo a mestra como eixo. Chocando-se, as rochas arremessadas se partiam e estilhaços feriam a mulher, que acostuma a estratégias, avançava.

     As pequenas evocações do cavaleiro, que seguiam “presas” também dentro do vórtex criado, lançavam em sincronia suas luzes azuis às paredes líquidas. Os mini-feitiços então atravessaram a barreira, e o feito lembrou o já distante expectador de uma antiga aventura ao inverno passado.

     O humano pensava em entrar ao calor da disputa, mas eram ainda muitas as variáveis, e meio cômodo decidiu por ficar no lugar onde estava. Caso optasse por um movimento falso, a rainha poderia de uma hora para outra se voltar contra ele próprio, controlando os mananciais que entrecortavam o cenário. Sentiu o impasse, mas confiava em seu plano.

     Ao centro, a performance líquida se expandia em diâmetro, desabilitando os demais inimigos da sala, os conhecidos seres de barro. O herói persistia em esperar à passagem em segurança, mas ainda sim podia interferir na batalha sem necessariamente estar lá de corpo presente.

     — Protejam-se! — Sua voz retumbou firme entre as paredes, reverberando e causando eco. Após o aviso, um sopro gelado varria a galeria, congelando as superfícies das águas e retardando mais os adversários.

     Sentiu coragem para avançar, e como um leão fez um salto acrobático no ar! Ao longe, a rainha fez as colunas que se expandiam pela sala voltarem em movimento reverso, pois absorvia agora sua própria magia envolvendo-se em uma imensa bola oca que a ajudava inclusive a revigorar saúde.

     Os goblins de pedra também foram reforçados com o tal escudo mágico, e trabalhando em trio, sumiram com a misteriosa e branca ameaça alada às paredes. Não tinham como ter noção do tempo em que estavam ali, se já era noite ou ainda dia, mas a claridade e as vitórias de mais uma improvável luta eram as certezas que os faziam continuar.

 

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     — Então... Acho... que já acabamos. Reconheço, serias um competidor fenomenal no torneio. Mas, nossos fardos e visões, são necessários. — Tânisa, esperando todo o resto voltar ao normal, falou com voz calma e fluida para transmitir certa “paz”. — No entanto, não é bom a viajantes festejos por uma única e simples vitória, e ainda mais, aquelas com ajuda. Quem sabe o que se esconde, atravessando esses rios e tocando às profundezas?

     Ora, ora... Em primeiro lugar, não era a mulher quem o cavaleiro teria encontrado a pouco, feita prisioneira e incapaz de continuar?! O que ela queria com aquele “plano”, afinal? O herói, refreando seu orgulho para não cair à ofensa, duvidou por um momento se ele próprio estava mudando.

     — Reservarei o melhor da batalha para vós, ó grande guardião da estirpe dracônica. — Ele ainda não tinha escudado tal epíteto, e apesar de notar evidente ironia aos dizeres da majestade, mostrou-se honrado por reconhecer seu valor e poderes. — Acredito que me ausentei em demasia de minhas obrigações. Nos reencontraremos em breve, cavaleiro. As águas fluem como nossos destinos. — E sem mais dizer, já fazia o caminho de volta, e certamente de retorno à superfície. O humano e as evocações permaneceram lá, livres para agora ir ou ficar.

 

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     O fantasma da bruxa das águas ainda deveria estar perto, visto que pacientemente o observador contava os segundos, em meditação. Após um longo período, provavelmente o início da noite lá em cima, sentiu fome e revisou seu estoque rápido de alimentos que levava em toda viagem. Depois, procurou uma cachoeira e enfim lavou seus cabelos.

     Retrocedendo seus passos então, pegou novamente o elevador de acesso ao andar superior, aquele do limiar entre os cenários de caverna e da tal dinastia. Descansando por ali mesmo o bastante para se recuperar física e mentalmente dos últimos acontecimentos, requereu novo ânimo para enfrentar os inimigos todos mais uma vez, dessa, com valentia e sem ajuda, nem mesmo das estratégias do Mundo Cerúleo. Talvez como um indício de mudança de rota, a alva crisálida presa ao teto tinha sumido, tornando as tentativas mais cômodas. Sempre que descansava, os homens de barro retornavam, “trancados” em uma espécie de ritual que enganava a própria morte.

     Não gostava de repetir lições, mas achou prudente refazê-las para, quem sabe, resistir melhor às adversidades mágicas. Achando-se mais capaz, foi ladeando pela esquerda até chegar em um novo salão com... mais formigas. Lembrou-se do berçário, mas de mesma forma aqueles insetos poderiam ser hostis, uma vez que os progenitores deveriam estar à mesma sala dos filhotes. Por via das dúvidas, atacava.

     E foi então que, avançando entre sombra e escuridão, avistou um cenário aberto onde se podiam ver as estrelas. Criaturas que pareciam ora humanas ora seres de outro mundo erguiam-se como em estalagmites, e as águas agora que denunciavam finalmente a grande foz corriam mais brilhantes de que o normal, voltando à imagem de “falsa paz” proposta por Tânisa. Ao centro, um trono imenso de um calcário claro e acinzentado se destacava, governado por um esqueleto de proporções também gigantescas e longas tiras em vestes laranja claramente de nobres. Devia ter sido um regente importante e emblemático para aquele povo, e, apesar de agora estático e há muito sem vida, sua postura simbolizava um eterno pensamento, o qual deveria ser um bem precioso por entre a sociedade.

     Claramente ao grande palco se desataria um combate memorável, e o cavaleiro ficou pensando se algo parecido a um dragão mergulharia àquelas cenas...

     Tomou como referência o curioso assento real, e com os olhos mediu a proporção da sala. Suas botas de couro ainda vedariam a entrada de água, mas a fim de proteger melhor a inundação do cenário achou prudente colocar o talismã de resistência a eletricidade. A cada minuto, crescia no homem o desejo pela futura e certa aventura, misturado com uma satisfação irônica de vitória. Ele ali esperava, como quem estava sendo observado.

 

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     Respirações aceleradas, passos misteriosos, chuvas se espalhando por todos os lados! Eles se encararam... e se desafiaram em épico confronto.

     O que aconteceu ao nosso herói? Qual foi a adversidade da vez e como se desenrolou à disputa? Verdades se reservam aos olhos do cavaleiro, o qual finalmente conheceu suas profundezas desconhecidas.

     E assim, terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.

A primeira crônica.

  A primeira crônica.         — Mas que calor é esse! Será que existe vida após 3.020?      O mês era junho. As folhas caíam... mas a te...