quarta-feira, 21 de maio de 2025

Fenda da morte.

 

     — (...) E então, apressastes a viajar? Vamos... porque a pressa? É lindo o ocaso aqui por estas terras — e o cavaleiro falava aproximando-se lentamente do homem. Estava a pé, e o ritmo de suas passadas era coordenado aos ecos de sua armadura de prata contra o chão. Olhou bem para a face do estrangeiro, e disse: — Espero que tenhais aproveitado vossa estadia em nosso castelo. E parabéns por chegar tão longe... intruso!

 

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     Léguas o viajante tinha percorrido para chegar até ali. Porém, nem mesmo em sua mais completa ambição (que já lhe era crescente e inevitável ao passo das vitórias e façanhas abarcadas pelo caminho) ousaria atravessar aqueles limites humanos. E os presságios já se notavam à ponte de ingresso: exigira muito de Ásirus ao atravessar aqueles obstáculos, feitos como barricadas de madeira alternando os lados, e bolas de fogo que eram lançadas de longe por catapultas.

     No entanto, apesar da primeira frente de aviso, a destreza e a prontidão do herói faziam dela brinquedo de criança, enquanto o mesmo podia muito bem confirmar que a passagem realmente era maior em seu interno medo, desmedidamente deturpando a realidade das coisas. Pelo serpentear do curto trajeto, alguns grupos coordenados de inimigos erguiam-se determinados a barrar seu avanço. Era difícil, mas somente entrando no olho do furacão para atestar sua própria capacidade; e, equilibradamente em montaria, já estudava a área enquanto desviava-se de previsíveis golpes. Os seus olhos logo captaram, à direita, um conjunto de rochas sobrepostas, formando um caminho sinuoso que, embora arriscado, prometia uma oportunidade estratégica. O Norte era guardado pelo imponente portão de ferro principal, forjado com intrincadas grades entrelaçadas, cujos encontros sobrepostos formavam agudos espinhos. A grossa torre de pedra da esquerda delimitava um extenso precipício, conferindo um tom mais ameaçador à inteira construção.

     — KRAGH! — Nem bem o explorador acabara seu atual objetivo, um ser humanoide e de proporções gigantescas despencou de um dos mirantes do castelo, aterrissando com um impacto brutal que fez o solo estremecer. O rugido gutural ecoou como uma onda de choque, acompanhada por uma espiral de vento e poeira. A força esmagadora do golpe de ar derrubou o cavaleiro, que foi debilmente lançado de sua montaria.

     Recompondo-se, ele pôde melhor visualizar o que acontecia: um disforme conjunto de músculos enegrecidos como troncos carbonizados de árvore erguia uma comprida espada em sua direção. A arma tinha um formato comum de grandes gládios para uma criatura com aquela força: feita em V, maior em sua base e afinava-se subindo para seu extremo superior. Contudo, não era a aerodinâmica do objeto que fez o cavaleiro tremer, mas sim os materiais raros de sua fabricação, imbuídos com poder de fogo, que literalmente fazia a lâmina queimar, rodopiando como uma ameaça ardente pelos céus.

     — Se já tivesse o sopro de gelo... — O herói pensou alto enquanto reposicionava seu cavalo em direção ao atalho pensado. O obstáculo que não estava nos planos era grande, mas revelava-se de mesma forma patético em agilidade e inteligência para batalhas. Com certa facilidade, contornou o grandalhão e subiu à primeira rocha. Em uma distância boa e calculada, optou por seguir a pé para ter uma melhor exploração.

     As colorações avermelhadas do solo, que podiam ser vistas também em curiosas e bem típicas vegetações, pareciam anunciar todo o tempo um perigo iminente. Lembrou-se das bolas de fogo que lhe foram lançadas, e avistou homenzinhos de chapéus tipo sombrero a controlar catapultas e algumas bestas de madeira. Com um escudo seu triangular, não foi difícil desvencilhar-se das flechas e atacar os inimigos, dando preferência aos que já se viravam para atacar o herói, reservando todo o resto para depois.

     Não sabia o que viria a seguir, mas mirou os olhares às alturas, como se agraciando-se e em ego inflado por estar chegando tão longe. As estradas e os desfiladeiros por si só — mesmo se lhe aparecessem vazios e sem inimigo algum —, já representavam extremos infortúnios e ditavam os ares amargos e tentadores da viagem. E, maior do que o nocivo veneno escarlate, de toda a região parecia destilar uma invisível maldição que chamava o viajante a galgar tais caminhos; como se um bruxo ou feiticeiro de tempos deveras antigos estivesse ainda evocando os bravos a lutar.

     Estava ali, afinal. Mas não fora por ritual ou arte inexplicável que seus passos foram conduzidos às terras. Certa vez jurou, para si mesmo e para seus entes queridos, partir em odisseia por tudo o que lhe fosse permitido, conhecendo e desbravando o mundo em busca de propósito, de crescimento interno e externo. Lugares eram desbravados conforme ele avançava em treinamentos e ganhava confiança... pois, inclusive ali, na presente região, aprendera o amargo gosto de decisões “desmedidas”. Aqueles azares foram, de uma certa forma, proveitosos para reforçar sua paciência e, “jamais admitiria”, olhar para si próprio e ver que até um grandalhão e exato como ele poderia cometer erros de cálculo.

     Eufórico ainda pelas recentes artes da guerra, girou seu corpo 180° para o Nordeste, e avistou um pequeno cemitério. Com toda certeza, a julgar as alturas e os ares miasmáticos que ali se faziam, o viajante iria se deparar com morcegos e provavelmente uma ou duas harpias – o que representava um grande pesadelo, e as pôde ver às distantes montanhas. Sua mão se encandecia preparando-o novamente para a luta, enquanto andava resguardo por suas facas de arremesso.

 

v   

 

      — (...) Ora... vamos. Não me faça perder tempo! — seu algoz continuava em sua seca e rouca voz, ironicamente a combinar com as sombras do local. — Lamentavelmente, o amigo terá de esperar. Pois o forte está vazio, e receio que todos já partiram... para outros afazeres. Porém... como sou um bom homem... creio que ainda haja espaço para mais um desafiante em nosso campeonato. Mandarei eu mesmo um falcão para Rainha Tânisa. Ela precisa saber disso... — Antes, mediu, logicamente, forças com o herói em uma batalha quase sem fim. Tolerando a contragosto as habilidades do oponente, conseguiu imobilizá-lo, desarmando-o por uma estratégia avançada. Eles estavam agora em uma pequena sala quadrada, de teto tão baixo que impedia qualquer humano de se erguer por completo. O anfitrião certificou-se de que as algemas estavam bem fixas ao prisioneiro, adotando um tom mais “amigável”, ajoelhado e encarando-o nos olhos desde um mesmo patamar.

     Ele foi embora, e deixou-o à meia-luz. Ásirus não poderia ajudá-lo, pois se encontrava em um ambiente fechado, e já tinha usado grande quantidade do seu poder contra as aves que margeavam aquela construção. Se tivesse poupado pelo menos um pouco... mas fora preciso para salvar sua própria pele nos andares de cima, dada a perícia e a agilidade do antagonista. A fim de aliviar a mente, estabeleceu um paralelo entre a situação atual e o infortúnio que também provara em um castelo já distante. Porém, a passada ocasião não era nada além de um simples e infeliz evento, facilmente contornado por rigor e acordos entre nobres; o que claramente não aconteceria ali, onde o cavaleiro foi pego totalmente por um deslize próprio, sem alternativa para escapar.

 

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     “Forasteiro sem nome, olá. (...)” O crepúsculo alaranjado trouxe a noite, e os vapores difusos anunciavam a nova manhã. O prisioneiro estava dormindo, na medida do possível tranquilo, e ainda às circunstâncias se permitiu sonhar. E lhe viera à mente uma lembrança boa... talvez a fatalidade que tivera dormido a pensar. Tal momento pareceu ser realista o bastante para... de repente, um tapa de água se chocar contra a sua face, enxarcando sua barba que já precisava ser refeita.

     — ...Não lhe ensinaram a não entrar nos lugares sem ser chamado?

     E ele enfim acordou. Não via nada à sua frente além de escuridão e poeira, mas pensou que a voz seria de uma mulher, uma vez que o carcereiro falou de “contatar a sua rainha”. Graças ao seu treinamento em audição, identificou que o barulho deveria estar a cinco ou seis passos curtos de distância; e, reparando em sua face recentemente enxarcada, supôs que a tal rainha Tânisa era uma bruxa.

     — Nosso hóspede enfim acordou — ela ainda falava à mesma distância do cavaleiro, e sua voz rouca, porém atrativa, parecia preencher toda sala. Não dirigia a palavra muito menos os olhares à tal figura, e dava ordens a um outro guarda-costas. — Deixemos com que se recomponha devidamente. Leve-o ao quarto da torre leste.

     Uma vez que o teto da prisão era baixo, o destinatário da mensagem teve de se agachar, e, devido ao seu tamanho e à sua armadura de pedra, executava a ação com dificuldade. Os barulhos dos choques dos materiais pesados e de seu corpo se arrastando àquele curto trajeto parecia alimentar ainda mais a satisfação da rainha, que agora olhava para baixo com expressão maliciosa, mas conservando seu esbelto corpo ereto e altivo. Anexava-se às cores do castelo em um longo e elegante vestido vermelho-vinho, e, descalça, alegrava-se pela frieza e pela poca luz do cenário.

     Como se não bastasse a pesada indumentária, um capacete cinza de ferro ocultava a real identidade do homem (a qual, inclusive, o forasteiro se pôs a pensar se era realmente um humano, ou qualquer outra criatura possível). Caso fosse verdade a segunda hipótese, aquilo confirmaria a “impossibilidade” em remover dita armadura, pois ela faria já parte de seu corpo, reforçando-o continuamente com excelente defesa física. Porém, mesmo assim, o que ainda existiria por detrás daquela carapaça? Algo normal e corpóreo...? Uma aberração feita em fumaça e que rapidamente se dissiparia não fosse a proteção externa...? Ele não quis pensar. Apenas sentiu-se agraciado pela oportunidade de respirar novamente ar puro, já em caminho para a tal torre leste.  

     Frente à porta, o grandalhão somente fez sinal com a cabeça para o cavaleiro entrar; e tão logo os pés o movimentaram, o outro fechou a passagem com um puxão barulhento. Diferente do esperado, encontrou um quarto arrumado: paredes ricamente decoradas em vermelho, objetos e outros adornos de ouro por todo o aposento, duas compridas janelas de vidro por onde o calor do sol entrava, e uma cama (também com adornos e arabescos em dourado), onde repousavam roupas da mais alta-costura e de algodão macio. Visões atrativas? Sim..., mas mais prudente e sensato não tocar. Concluiu, lembrando da rouca voz que ouvira. Por isso que não gosto de...

     — O que disse, nobre viajante? — A anfitriã chegou, de mesma forma com seus pés em contato direto com o chão frio, e ostentando o mesmo traje fatal de antes. Conforme a todas as rainhas, sua coroa elevava-se em um típico e único estilo gótico em tom cobre, levemente acastanhado; e seus cabelos negros, harmonizados em uma maquiagem forte, finalizavam por concedê-la um status impiedoso. A julgar pela efígie, não iria se demorar à conversa. — Vosso ímpeto e vossas qualidades já se fazem conhecidas por essas terras. Sabemos que não sois rei ou nobre, muito menos levais algum título de nobreza sequer; contudo as alcunhas de “cavaleiro sem nome”, “valoroso e eterno viajante”, ou mesmo “vagante solitário” se ligam perfeitamente a vós tal como coroas que, a cada lua, pesam sobre nossas cabeças. Nossos fardos e visões, querido, são necessários. — Tânisa tinha, inegavelmente, estratégica eloquência e confiava em seu poder de persuasão. Sempre em seus discursos e decretos, objetivos e sem floreios, mexia somente os músculos da boca, optando por deixar quietos seus pés e mãos, além de saber exatamente onde queria chegar. Quebrando o protocolo, porém, aproximou-se do hóspede e sentou à cabeceira da cama. Este ainda estava em pé, e recuou como pôde alguns passos para trás, mantendo, contudo, os olhos fixos à frente. — Não precisa ter medo, cavaleiro. Creio que seja difícil acreditar, mas, apesar de tereis aqui entrado sem qualquer permissão ou consentimento, não guardo rancor. — Ela levantou os olhares e cheirou a atmosfera primaveril da torre. Continuava aos céus, como se dirigisse as palavras ao viajante, que continuava à mesma posição, com espada e escudo vigilantes. — Eu... não tentaria nada por agora se fosse você. Apesar de não me encontrar em trajes e vigor adequados por hora, creio que... nunca perdera para uma mulher em combate, estou certa?

     O clima de tensão tomou conta do aposento. O herói sabia que a rainha era também uma bruxa; da mesma forma que ela já deveria ter se inteirado sobre as qualidades de seu adversário. Um passo em falso, um mínimo movimento em falso que fosse, e a anfitriã poderia estalar os dedos e inundar em água o comprido e cilíndrico quarto, deixando o protagonista a sós (na melhor das hipóteses), os se transformando em uma enguia ou em algum outro monstro marinho. E... porque ele estava lá afinal?! Porque partira dele aquele desejo em desbravar o desconhecido, sempre em busca de novas e únicas aventuras?! ...Persistia às adversidades para se sentir vivo, talvez; e, desde o passado infortúnio, era questão de honra para ele retornar às terras vermelhas do Leste.

     — Queria lhe fazer um convite, cavaleiro: — Virou o pescoço subitamente e encarou o homem nos olhos. Não se via uma total imparcialidade na expressão da soberana, porém ela deixou o visitante livre para a escolha. — Vossas passadas podem ser recompensadas em um torneio que, a cada cinco anos, se renova por essas regiões. Uma vez que nosso mundo conhecido está mudando, a cada dia vemos a necessidade de nos superarmos e de nos prepararmos em estratégias e zelo para uma manutenção da vida. Infelizmente, são poucos hoje em dia os territórios e reinos “neutros”, nos quais realmente podemos viver como antigamente, ao mansueto ritmo das estações. Vistos com indiferença por alguns, estamos nós, luzes vagantes pela Terra em busca de mudança, de um futuro mais digno para nossos descendentes. Nossos fardos e visões, querido, são necessários. — Com isso, deixou o que viera propor-lhe ali “no ar” e esperou então alguma interjeição do cavaleiro. Ele mediu as ações, para diplomaticamente falar:

     — Tendes razão, majestade. O tempo em que vivemos já não se contenta apenas com espadas, bravura ou ainda estratégias vãs. Cobra de nós algo mais fino… como saber onde pisar, ou quando calar. — E, não sabia como dizer o resto. Ficou com receio de ser mal interpretado, porém continuou com toda a nobreza que aprendera a ter: — Bem sei que em vossas palavras há propósito e verdade; contudo, peço-lhe tempo para que as sonde em meu coração de guerreiro. Certamente, não tardarei em dar-lhe a resposta.

     Calou-se, mas concluiu a frase. Não sabia se o melhor, ao contexto da situação, seria a opção “não tardarei” ou, no caso, “em uma ou duas luas”. Certamente o homenzinho petulante acharia com classe a saída daquele labirinto linguístico; e uma vontade torpe de sorrir quis invadir o herói. Porém, ao mesmo contexto e zelo da situação, não alterou sua face perante a rainha.

     — Tudo o que acontece tem realmente um porquê de acontecer... A fortaleza onde te encontras jaz vazia no momento, e muitos de nossos convivas se fazem espalhados pelo mundo, pois aceitaram enfim o chamado para a contenda lendária. Começaremos os jogos à terceira lua da primavera, e todos e todas que se julgarem aptos para grandes feitos ainda podem se inscrever. — Cordialmente, retirou sua silhueta da cama e, deixando o “rival” a sós para pensar, limitou-se a dizer apenas duas últimas frases: — Reforço a atitude de não tardares, pois referido prazo se avizinha aos céus. Nossa competição não terá mesmo brilho sem vossa ilustre presença, mas, reforço minha palavra, nada de mal vos acontecerá caso não desejeis tomar parte. Podeis ficar aqui o tempo necessário.

 

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     Há muito não provara da estúpida sensação de ir ou ficar. Lembrava que aquelas coisas se sucediam lá pelo início do treinamento, nos tempos em que nem acreditava que pudesse fazer frente a um dragão sequer. Agora, habitualmente, partia de forma célere e objetiva para outro desafio, porém se deu ao luxo de permitir aquela dúvida cruel de antigamente, pois aquela decisão poderia afetar diretamente os planos e desejos da rainha. E outra: já levava consigo o veredito entre se juntar ou não às ditas luzes do torneio, mas Tânisa seria tão tolerante assim à escolha, mantendo sua palavra como afirmara à noite anterior?

     — Pouco provável... a julgar pela pessoa que a proferiu — ele murmurava, de vestes e face totalmente renovadas, a descer os degraus de argila sólida. — Agora, tenho de...

     Ele parou à sua incursão. Não sabia onde a anfitriã estaria àquela hora; e suspeitando que o castelo ainda estivesse vazio, ponderou seus passos e atitudes.

     Logo ao alcançar o primeiro piso, encontrou uma bacia pequena, feita da mesma cor e material da inteira torre, onde águas cristalinas repousavam como se ali esperassem o herói. Ele não resistiu, e olhou o seu interior; porém protegendo-se desde certa distância, enquanto colocava um elmo invisível que repeliria qualquer agrave mágico.

     “Perspicaz e Nobre Cavaleiro, é uma dádiva que tenhais tomado vossa decisão. Como prometido, não vou interferir; certa de que não mexereis em nada mais por aqui e muito menos entrareis onde não fôreis chamado. Como já percebesteis, possuo controle sobre a água, e por isso minha presença física não nos é mais necessária. Queira ter a bondade de retroceder vossos passos até o passado aposento, e, tão logo entrares, na cama aparecerá como em imagem vossa personalizada armadura para o Torneio das Lendas dos Reinos. Será uma pena se não aceitares, mas, repetindo, sinta-se livre com a escolha, mas também com sua consequente e inevitável... consequência.

     Respirou fundo, e... pensou acessar o Mundo Cerúleo. Mas, apesar de o ambiente ser fechado, seria loucura negligenciar agora tal proposta real. Sem mais nada a fazer, subiu novamente a escadaria em espiral, e, abrindo a porta, lá estava a armadura; ou apenas um esboço dela, a flutuar como fantasma sobre a cama.

     Nunca em suas andanças tivera visto ou sonhado com uma indumentária como aquela. Tinha espaços em pedra, reforçada com grossos ossos ou dentes de criaturas, e com toda certeza ofereceria boas defesas mágicas e físicas. Tentado, ele circundava o leito de penas de ganso, brigando consigo mesmo para não ousar pôr a mão.

     Era uma linda visão. Contudo, com a mesma cara e sorriso que entrou, reclamou suas forças e conseguiu descer ao piso anterior.

     E novamente a bruxa se comunicou com o cavaleiro através da superfície líquida. Cada frase aparecia com a mesma fluidez em que se perdia no espaço. Ele as lia com cuidado: “É uma pena que continueis firme no propósito de renunciar ao fardo. Mas, sois livre; e a vossa escolha é preciosamente válida. Somos luzes vagantes pela Terra, boas ou más a depender do contexto e da época, aonde quer que vamos. Que a graça e o discernimento o guiem. Deixe imediatamente o castelo a partir de agora”

     Obedeceu a última ordem sem contestar (é claro, já estava doido para ir embora). E o que fez depois daquilo foi montar em Ásirus, correr às depressões vazias de gente e de monstros, e agradecer pela vida. Tinha escapado dali, mas ainda o crepúsculo vermelho dali o chamava para algo não resolvido.

 

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     Como à torre, saiu e voltou depressa. Não gastou os oito dias treinando, o que seria o habitual; mas sim, lá se viu preparado e decidido. Requereu apenas aquele final de noite, e as seguintes 24 horas consecutivas, para então traçar conhecida rota, e enfim ter a sua revanche contra o dragão embranquecido que dormia frente à uma igreja.

     Mas primeiro, optara por perder mais algum tempo a ver os patifes se engalfinharem eternamente ali naquele mesmo lugar. Para não dar sorte ao azar, seguiu em seus passos de costas, orientando-se por um caco de vidro que refletia imagem, pego em uma caverna qualquer quando fugia de criaturas primatas. Voltando ao presente e já posicionado em segurança ao pequeno mirante... ahhh... como lhe satisfazia em ego, chegando a ser um tanto quanto maquiavélico, rever as cenas, enquanto, sem esforço algum, reforçava suas próprias características, repassando mais tranquilamente estratégias de batalha. Em hora oportuna, redirecionou seu cavalo.

     O grandalhão estava dormindo quando ele chegou, camuflando em uma imperfeição ao ambiente. A fim de não o acordar, usou o estoque que tinha de algodão para obstruir o som de seus passos e, furtivamente à frente de cada misteriosa flor no terreno, usou seu novo poder dracônico sopro de gelo para, a congelar ditas biologias, se certificar que elas não se abririam de repente, a exalar o delicioso aroma podre impregnado em boa parte da região. Tão logo as passadas e as armas voltaram a fazer barulho, já estava tudo pronto. Achou, tal qual o passado wyrm, injusto ir com a vantagem do talismã de Tamara; mas, diante do contexto atual e das inevitáveis e tolas lembranças evocadas, levou a coragem da princesa para a batalha. Optou também por deixar ao cinto o seu sempre pronto elixir de força e vigor, e beberia deste em momento oportuno. Partiu.

     A ameaça se levantou em postura real e intimidante! Com um rápido ataque de cauda, olhou para um lado e para o outro; e celeremente ainda , voou e mostrando as garras. Lá embaixo, o herói corria, mas se desvencilhando das rochas que estabeleciam os limites daquele palco. Além disso, ponderava por usar o cavalo apenas quando se aproxima do bicho, e na maior parte do tempo usava seus próprios pés para fugir em linha reta; a contar a distância, em terra firme. Isso dava espaço para o cavaleiro, sorrateira e ocasionalmente, desferir boas garras de dragão ao adversário.

     — O que foi, está mais raivoso hoje? Vamos lá dragão!

     Baforadas ao denso e rubro pó percutiam o homem ora pela frente ora pelos lados, e o escudo dourado ganho como presente à terceira visita ao castelo das montanhas cumpria finalmente seu papel. Evasivas, controle e mais garras, ambos os lados sofreram danos; mas, uma mirada certeira nos pés da criatura, o destino trouxe a vitória!

     — Ah não! ...Não acredito que morri assim...

     Era louco ou o quê? Queria permanecer ali em luta sem fim tal qual as aberrações do antigo eirado?! Admitiu que... pelo menos mais um pouco... de emoção seria bem-vindo; mas... também já tivera tido muitos momentos “emocionantes” nos dias anteriores.

     No entanto:

 

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     E ter, naquela manhã de ares quentes congelados eternamente nos céus, derrotado mais uma criatura dracônica alegrava o viajante, fazendo-o, em consequência, crescer em ego. Mirou seus passos em direção à uma outra ponte, esta com precipícios até maiores, mas ao mesmo modo com coragem e esperanças elevadas.

     Passou a cavalo pelo que restou de um pequeno bosque contornado por uns jarros quebradiços, e um espírito incomum apareceu do nada. Apenas disse “oi” para a tal árvore ambulante, e chegou em uma outra ponte. Graças aos Deuses, não havia qualquer tipo de construção grande atrás. Porém, única coisa desproporcional ao cenário, que poderia ser confundida com montanha caso não fosse preta, era um outro gigante dragão, de tamanho e características físicas similares à primeira e distante besta enfrentada, a mesma que um dia tomara lugar a casa do explorador.

     Usou uma postura mais “cautelosa” para a luta. De certa distância, evocou 2 arqueiros e ordenou para que ficassem de longe, atirando flechas. Mesmo que vertessem poucos e raros danos à alada criatura, estes a distrairiam, enquanto ele ganharia tempo para correr, novamente em linha reta, com seu cavalo. Desmontava somente aos tópicos e estratégicos momentos em que ia usar as garras de dragão, e, de mesmo modo, cronometrou a hora de beber o sagrado elixir.

     Que saudoso foi lembrar-se de sua primeira luta! Atentando-se à agilidade da criatura, e relacionando com a longa distância da ponte, fez uso de seu verde talismã, que também o concederia recuperação rápida de vigor. Fazia parte de suas visões valer-se de não mais do que uma ou duas vantagens a depender da situação, mas como a fera teria um soprar de fogo descomunal, pegou ainda o pingente que cobriria essa resistência.

     Os sincrônicos arqueiros de trás trabalhavam bem, e a força e vitalidade do cavaleiro se equiparava àqueles destrutivos e colossais animais. Ataques de cauda, rajadas de asa, chutes com as pesadas patas traseiras, mais garras... Tudo aquilo já ficava conhecido à sua mente perspicaz.

     Repetia a estratégia várias vezes, e, imbatível com Ásirus, recebia poucos danos, que eram espertamente curados com curas rápidas de saúde. No entanto, já começava a ficar convencido, e, em uma virada brusca em que a fera usou todo o seu corpo, o amigo cerúleo foi expulso ao seu mundo de origem. Como já estava há muito executando aquilo, ele não tinha mais frascos para fazê-lo voltar.

     Por instinto, o dragão se posicionou bem a frente do homem, e ambos davam pulinhos para trás para melhor se localizarem. Assim que a fera abriu a boca para varrer tudo em fogo, o humano já se preparava para defender como podia, graças à uma forte petulância sua.

     — Pode vir...!

     A cena foi épica, e entre pirotecnias e poeiras, alguém narraria aquilo com o maior e mais exagerado brilho possível. Rápidos e precisos sopros de gelo se chocavam com as substâncias incandescentes expelidas desde a garganta do inimigo. Aquela curiosa parede de cores duais e opostas protegia o desafiante, que, aguentando firme em fôlego, tentava se ater a todas as variantes possíveis. Centelhas que dali escapavam fizeram por mandar de volta ao Mundo Cerúleo o arqueiro da esquerda. Porém, com uma flechada certeira ao pescoço da criatura, a evocação da direita conseguiu “distrair” o enorme bicho, fazendo-o perder a concentração.

     Antigamente por instinto, mas agora por adrenalina, o viajante solitário correu à frente, e, com um único e final golpe de lança, acabou por mitigar o fogo.

     Duas majestades aladas concluídas em um único dia! E, não eram quaisquer divinos soberanos... ambos representavam grandes feitos, imersos em uma região e adversidades sobremaneira cruéis. Estava melhorando em treinamento, mas resolveu sabiamente por ora abandonar as areias vermelhas. Seguia feliz e despreocupado em seu cavalo.

     E assim, terminou-se mais uma saga do herói, com disciplina e palavras a seu ponto.

A primeira crônica.

  A primeira crônica.         — Mas que calor é esse! Será que existe vida após 3.020?      O mês era junho. As folhas caíam... mas a te...