segunda-feira, 24 de março de 2025

As memórias do fogo.


     — (...) E então... nos colocávamos a viajar, Ásirus e eu. Juntos, porém solitários pelo mundo afora... — Em uma noite após a grande festa, o cavaleiro enfim falava, igual o rei a olhar com um brilho opaco e entristecido para o fogo da lareira. Pausas e momentos de hiato lhes eram constantes, e o próprio monarca não soube se teria acertado na decisão de forçá-lo a falar, pois agora temia seu descontrole. Ao que parecia, não era deverasmente digno aos nobres o choro e a recordação de histórias tristes, e todos os representantes das altas camadas sociais teriam as mesmas ou similares atitudes intempestivas e exageradas se colocados sob aquelas situações. — Certa vez, disse-me um governante sábio: jamais seremos capazes de apagar o inevitável. E continuo ao mesmo parecer de antes, atestando que tudo nos é efêmero, a exceção da memória... Perdão, meu rei, mas tinha de dividir tal dor com alguém, para libar-me deste sentimento de angústia o qual me consome como pesada armadura. Pela amizade que, talvez vacilei em buscar, pensei em revelar a minha saga até aqui ao servidor que outrora me acompanhou à essas paredes, e agora vejo que tem prosperado em vosso reino. No entanto, por mais que fosse bom para ambos, referida atitude não demonstraria prudência. Tenho certeza de que sois um homem íntegro, e creio que possa requerer sigilo sobre essas informações.

     — Em outros tempos, seria uma afronta um subjugado fazer tal requerimento à minha pessoa. Porém, agora já podemos nos tratar à forma de “tu”, uma vez provado teu valor. — Abriu um sorriso para o amigo, e suas palavras seguintes não foram tão longas nem enfadonhas: — Certa vez, uma alma predestinada a difíceis feitos alertou-me que a vida sempre segue seu fluxo; e que, apesar da perda de minha querida Ellene, Tamara, nossa corajosa e forte filha, brindava-nos com seu sorriso e suas palavras com aroma de plantas. Permita-me dizer, ó preclaro cavaleiro sem nome, encontras-te encanto à companhia de Ásirus; e conseguiste a elevada graça de vislumbrar o Mundo Cerúleo. Alegre-te, homem!

     Logo no início de seu relato, o misterioso viajante trouxe à memória uma cena de sua infância, e rapidamente a emendou com a imagética visão de uma cabana na floresta. Lá, em um lugar apartado e cercado de misteriosas névoas, sua avó Melina lhe revelou uma entrada secreta para um outro plano, igual ao dos mortais, porém vazio de gente.

     Fora lá que o cavalo apareceu para o herói, entre pulos e reverências espectrais. Sem entrar muito em detalhes, “ensinando” objetividades inclusive ao próprio rei, aclarou que, em toda a vida, e não somente lá ao refúgio secreto, nada pertencia a ninguém e até mesmo uma inanimada planta merecia respeito.

     — Bem sabes, meu soberano e amigo rei... Levo, dentre minhas alcunhas abarcadas, a menção honrosa de “viajante solitário”. E tal termo muito me apraz, e nele está contido uma parte de minha história. Não toda, louvo aos Deuses, mas sim, consideráveis acasos e reminiscências de minha origem.

     O monarca reparou em tal adjetivo que o cavaleiro escolhera. Na certa, optara por não usar “família” porque ele estava diante de um homem forte: os motivos que o levaram a sempre percorrer longas distâncias, com objetivos um tanto quanto insanos e desmedidos de desafiar dragões e obstáculos de grande ou colossal porte, foram as perdas que sofrera anteriormente. O rei não conhecia o verdadeiro significado de uma vida sem privilégios. Ainda mais, naqueles tempos sombrios, onde o respeito e a ética tinham desassistido por completo a plebe sem reino. Já os que se encontravam em territórios feudais poderiam se dar ao luxo de baixarem um pouco mais a guarda, mas... infelizmente... estava tudo um caos. E os reis fingiam, mas não se importavam de fato.

     — Tuas verdades e coração são raros nestes tempos. Qualidades similares às minhas, um governante pacífico e justo. — Sorriu e levantou-se como de uma outra vez. Olhava, através da janela de vidro, para o arranjo de lírios-do-vale e papoulas ao jardim. — Nossa doce a corajosa Tamara, minha amada e estudada Ellene, tua unida e feliz família... Uso os possessivos agora por meras questões formais; mas, assim como tudo nos é efêmero, não somos dignos de manter os laços ad infinito. — Voltou para onde estavam, para a mesa do xadrez em frente à lareira, igual daquela vez. — Talvez seja melhor acreditarmos que nascemos e seremos sempre individuais. Não é bom nos apegarmos tanto à meros laços e convenções humanas...

     Depois daquele tempo de reflexão, o qual o forasteiro já achava, logicamente, longo demais e sem necessidade, conduziu a conversa para o seu objetivo final: a “retomada”, ainda que ele mesmo soubesse ser apenas temporária, de seu pedaço de terra natal. Muito antes do ataque dos humanos, a planície úmida conservava-se em construções e paisagens vívidas, protegidas por uma caverna ao fundo que ajudava ao sustento e proteção daqueles que lá viviam. Conforme dito testemunho, ladrões a mando de um nobre ou alguém mais poderoso incorreram ali em consequência de um aumento abusivo de impostos. E... após o lugar ficar por muito tempo vazio, ameaças de toda sorte tomaram conta. A modificação acometida ao cenário, de um refúgio tranquilo e “apartado de confrontos” para uma visão de depressão pantanosa, era até fácil de entender tendo conhecimento do passar dos anos. Mas a invasão e proliferação de monstros, alguns de aparências humanoides e outros mais ou completamente bestiais, continuava misteriosa e cercada por lendas ou crendices com um toque ignorante de sarcasmo. Talvez, até mesmo provinham do tal Mundo Cerúleo, o plano onde o cavaleiro peregrinou e treinou em tempos de outrora para se desenvolver, mesma dimensão que as criaturas encontraram também os portais de interseção graças a entradas e saídas sem o cuidado de fecharem-se as passagens adequadamente.

     — A sorte estava a meu favor! Pois, apesar de o dragão ter tomado posse do lugar, eu ainda tinha um bom conhecimento sobre toda a área: locais para aonde poderia correr, e possíveis elementos fixos ou soltos no terreno que me serviriam de armadilhas. Uma vez que só contava com uma tentativa, e esse mesmo artigo definido perecia maior graças ao meu sentimento, ainda bobo, de retorno ao lar, levei 100 facas para a missão, equilibradas em 50 de cada lado da sela de Ásirus. Dispensei o atual escudo que usava, pois confesso que ainda me carecia a destreza, além de que o objeto poderia não ser de tanta ajuda. No dia anterior, minha vó apareceu à dimensão e me entregou um colar verde esmeralda, com acabamento em amarelo vivo. — Quer tivera sido por vaidade, ou mesmo por recordações passadas, mostrou o presente enquanto o detalhava. O rei já sabia o desfecho do conto que ouviria à sequência, mas nem por isso desdenhou a importância do relato, e nem de quem o narrava. Gostava de imaginar as cenas e poder se sentir um pouco mais livre e sem obrigações reais, e aquela experiência seria uma ótima oportunidade para conhecer melhor a plebe, sempre moldando-se em um bom e justo governante. — O objeto, circular no centro e com essas cinco nuances em formato de pequeninas bolas ao redor, ilustra a efígie de um resiliente animal. Repare em seu estilo rajado e em seu leve alto-relevo, encaixando-se em uma extremidade alongada, a lembrar um pescoço. Melina me confiou um talismã, e tal bênção me proporcionaria restaurações rápidas e gradativas em vigor, o que seria muito útil uma vez que iria correr de galope a cavalo e planejava enfrentar uma fera daquele porte. ...Você pode simular, e até inclusive colocar em mesmo plano futuras e adversas condições que irá um dia enfrentar, mas receio que nada disso corresponda à sensação real da hora derradeira.

 

v   

 

     (...) E então, ele já montava seu cavalo. A estatura do cavaleiro, com 1,78 m, tornava-se mais imponente em sua montaria; mas os companheiros não passavam de bebês, frente ao colossal dragão de aproximadamente 23 metros. Apesar de todo o seu arsenal físico e inclusive mágico para o desafio, sentiu que se precipitou em confiar no seu ínfimo estoque de apenas duas curas rápidas para vida, sem garantia que restaurariam por completo a sua saúde. A melhor arma que dispunha no momento era um machado, e, por mais reforçado que estava, oferecia um alcance curto. E porque persistira àquela lógica, outorgando uma missão para si de derrotar todos os dragões e criaturas gigantescas da época? Deveras, era sim um grandioso feito, mas não seria tão racional traçar tal caminho: em que os inimigos e armadilhas seriam maiores, as estradas apresentar-se-iam mais longas e bifurcadas, e as recompensas obtidas ao final de cada ameaça vencida ofereceriam migalhas não mais do que insignificantes para um simples humano.

     Mas... ele não desejava ser “apenas mais um”. Os acasos dos tempos e das guerras não eram de ficar escolhendo, com ética, suas vítimas; e o pequeno herói se viu indefeso em baixo de um alçapão secreto, sendo forçado a se esconder enquanto aconteciam coisas lá em cima.

      — “Acredito que você já esteja bem grandinho. Pois bem, é chegado o momento” — Lembrava-se ainda das exatas palavras da avó na cabana. Como se ali as declamasse, em volume audível para si e como em prece para a chegada triunfal da alada fera, manteve a calma. — 12 anos é uma idade auspiciosa, em que os sonhos ainda estão maiores, contudo se veem próximos à confluência da fase adolescente. Saudações, eterno viajante! A vossa viagem se aproxima. Nos veremos em breve, em outras oportunidades.

     Atravessou o portal... e lá se desenvolveu até as obrigações futuras. Retornando ao seu plano de origem, pensou em perseguir no encalço dos antigos ladrões que lhe privaram da liberdade anos atrás. Contudo, com o amadurecimento e atitudes menos impulsivas e mais ponderadas, supôs que os tais salteadores representariam tão somente a linha de frente de algo maior: uma longa jornada de conspirações e interesses oportunistas que poderia ser psicologicamente nociva a ele próprio, o moldando segundo outras verdades e lentamente o desviando de seu propósito inicial. Almejava, humildemente, seguir em paz a viagem; conhecendo outros povos e desbravando outras distâncias, restaurando a esperança e os sorrisos de dias melhores.

     Voltando à cena, arremessou destramente de suas mãos seis facas que se cravaram nas duas asas do animal, o impossibilitando de se mexer por alguns segundos. A presa já se enfurecia e uma grande bola de fogo varreu o ar em direção ao cavaleiro, respingando um vivo rastro de fogo ao redor, queimando a plantação e acabando de destruir as ruínas que ainda se mantinham de pé ao cenário. Atordoou-se por memórias, mas não pelo ataque, que passou rente ao seu corpo graças ao galope preciso para a direita. Rapidamente, soou um sino que lhe fora entregue, e do tal Mundo Cerúleo surgiram dois pequenos goblins de pedra, munidos com projéteis e armas prontas para combates a distância. Seu machado também furtivamente debilitou mais o dragão, e em seguida o grupo dos desafiantes saiu dali, pois a fera já recuperava a postura.

     Mirando fixamente desde direções opostas, o cavaleiro e o dragão incorriam um ao outro como se fossem dois aptos competidores de uma prova de justa. As criaturas pétreas de suporte foram eficazes no começo da luta, mas rapidamente acabaram por expulsas graças aos ataques de asa e chutes do animal. As pequenas e curtas facas, que o viajante tinha o cuidado de lançar sempre aos pares para ajudar a manter o seu próprio equilíbrio e do cavalo, silvavam no ar como pássaros. Algumas realmente se chocavam contra a sua pele dracônica, que, por não ser 100% protegida por escamas duras e robustas, oferecia menor resistência. A fera era ágil e apta para voos de diversas amplitudes, por isso teria de ter uma biologia adaptada a tais condições. O brado da magnânima ameaça imperava medo por onde pousava, mas parecia que o humano ao chão controlava bem seus passos, distanciando-se nas horas certas e aguardando instantes silenciosos para mirar o machado às suas patas.

 

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     — Mas, ainda me encontrava... como com certeza diria vosso servidor “apenas em um esboço de início de jornada”. — Após o conciso relato, permitiu-se fazer menção ao seu amigo petulante que conhecera no reino. Pois, às palavras dele, o conto tornar-se-ia mais rebuscado, cheio de adornos romantizados e talvez de fatos que até nunca existiram. —... A partir do momento em que estamos no jogo, somos como peças que movimentam este tabuleiro, mas nossos pensamentos e ações também têm o poder de reformular as regras. Para mim, penso que os desafios, caso estejam no momento e no contexto certo, revelam-se para nós aos mesmos planos das vitórias. Claro, temos de respeitar nosso corpo e ouvir nossas internas motivações; mas nada melhor do que um grande obstáculo para ratificar que somos capazes. Obrigado pela estadia, meu rei. Permanecerei por mais algumas luas aqui, e depois seguirei viagem.

     — O castelo, meus homens e as riquezas do reino estão a vossa disposição. Obrigado digo eu pela história, muito me aprazem contos e feitos heroicos. Em honra ao passado, marcharemos ao futuro!

     As últimas chamas do reino apagaram-se e a natureza se aquiesceu, restando apenas seus habitantes noturnos... E assim, terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.

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