— (...) E então... nos colocávamos a
viajar, Ásirus e eu. Juntos, porém solitários pelo mundo afora... — Em uma
noite após a grande festa, o cavaleiro enfim falava, igual o rei a olhar com um
brilho opaco e entristecido para o fogo da lareira. Pausas e momentos de hiato
lhes eram constantes, e o próprio monarca não soube se teria acertado na
decisão de forçá-lo a falar, pois agora temia seu descontrole. Ao que parecia,
não era deverasmente digno aos nobres o choro e a recordação de histórias tristes,
e todos os representantes das altas camadas sociais teriam as mesmas ou
similares atitudes intempestivas e exageradas se colocados sob aquelas
situações. — Certa vez, disse-me um governante sábio: jamais seremos capazes de
apagar o inevitável. E continuo ao mesmo parecer de antes, atestando que tudo
nos é efêmero, a exceção da memória... Perdão, meu rei, mas tinha de dividir
tal dor com alguém, para libar-me deste sentimento de angústia o qual me consome
como pesada armadura. Pela amizade que, talvez vacilei em buscar, pensei em
revelar a minha saga até aqui ao servidor que outrora me acompanhou à essas
paredes, e agora vejo que tem prosperado em vosso reino. No entanto, por mais
que fosse bom para ambos, referida atitude não demonstraria prudência. Tenho
certeza de que sois um homem íntegro, e creio que possa requerer sigilo sobre
essas informações.
— Em outros tempos, seria uma afronta um
subjugado fazer tal requerimento à minha pessoa. Porém, agora já podemos nos
tratar à forma de “tu”, uma vez provado teu valor. — Abriu um sorriso para o
amigo, e suas palavras seguintes não foram tão longas nem enfadonhas: — Certa
vez, uma alma predestinada a difíceis feitos alertou-me que a vida sempre segue
seu fluxo; e que, apesar da perda de minha querida Ellene, Tamara, nossa
corajosa e forte filha, brindava-nos com seu sorriso e suas palavras com aroma
de plantas. Permita-me dizer, ó preclaro cavaleiro sem nome, encontras-te encanto
à companhia de Ásirus; e conseguiste a elevada graça de vislumbrar o Mundo
Cerúleo. Alegre-te, homem!
Logo no início de seu relato, o misterioso
viajante trouxe à memória uma cena de sua infância, e rapidamente a emendou com
a imagética visão de uma cabana na floresta. Lá, em um lugar apartado e cercado
de misteriosas névoas, sua avó Melina lhe revelou uma entrada secreta para um
outro plano, igual ao dos mortais, porém vazio de gente.
Fora lá que o cavalo apareceu para o
herói, entre pulos e reverências espectrais. Sem entrar muito em detalhes,
“ensinando” objetividades inclusive ao próprio rei, aclarou que, em toda a
vida, e não somente lá ao refúgio secreto, nada pertencia a ninguém e até mesmo
uma inanimada planta merecia respeito.
— Bem sabes, meu soberano e amigo rei...
Levo, dentre minhas alcunhas abarcadas, a menção honrosa de “viajante
solitário”. E tal termo muito me apraz, e nele está contido uma parte de minha
história. Não toda, louvo aos Deuses, mas sim, consideráveis acasos e
reminiscências de minha origem.
O monarca reparou em tal adjetivo que o
cavaleiro escolhera. Na certa, optara por não usar “família” porque ele estava
diante de um homem forte: os motivos que o levaram a sempre percorrer longas
distâncias, com objetivos um tanto quanto insanos e desmedidos de desafiar
dragões e obstáculos de grande ou colossal porte, foram as perdas que sofrera
anteriormente. O rei não conhecia o verdadeiro significado de uma vida sem
privilégios. Ainda mais, naqueles tempos sombrios, onde o respeito e a ética
tinham desassistido por completo a plebe sem reino. Já os que se encontravam em
territórios feudais poderiam se dar ao luxo de baixarem um pouco mais a guarda,
mas... infelizmente... estava tudo um caos. E os reis fingiam, mas não se
importavam de fato.
— Tuas verdades e coração são raros nestes
tempos. Qualidades similares às minhas, um governante pacífico e justo. — Sorriu
e levantou-se como de uma outra vez. Olhava, através da janela de vidro, para o
arranjo de lírios-do-vale e papoulas ao jardim. — Nossa doce a corajosa Tamara,
minha amada e estudada Ellene, tua unida e feliz família... Uso os possessivos
agora por meras questões formais; mas, assim como tudo nos é efêmero, não somos
dignos de manter os laços ad infinito. — Voltou para onde estavam, para
a mesa do xadrez em frente à lareira, igual daquela vez. — Talvez seja melhor
acreditarmos que nascemos e seremos sempre individuais. Não é bom nos apegarmos
tanto à meros laços e convenções humanas...
Depois daquele tempo de reflexão, o qual o
forasteiro já achava, logicamente, longo demais e sem necessidade, conduziu a
conversa para o seu objetivo final: a “retomada”, ainda que ele mesmo soubesse
ser apenas temporária, de seu pedaço de terra natal. Muito antes do ataque dos
humanos, a planície úmida conservava-se em construções e paisagens vívidas,
protegidas por uma caverna ao fundo que ajudava ao sustento e proteção daqueles
que lá viviam. Conforme dito testemunho, ladrões a mando de um nobre ou alguém
mais poderoso incorreram ali em consequência de um aumento abusivo de impostos.
E... após o lugar ficar por muito tempo vazio, ameaças de toda sorte tomaram
conta. A modificação acometida ao cenário, de um refúgio tranquilo e “apartado
de confrontos” para uma visão de depressão pantanosa, era até fácil de entender
tendo conhecimento do passar dos anos. Mas a invasão e proliferação de
monstros, alguns de aparências humanoides e outros mais ou completamente
bestiais, continuava misteriosa e cercada por lendas ou crendices com um toque
ignorante de sarcasmo. Talvez, até mesmo provinham do tal Mundo Cerúleo, o
plano onde o cavaleiro peregrinou e treinou em tempos de outrora para se
desenvolver, mesma dimensão que as criaturas encontraram também os portais de
interseção graças a entradas e saídas sem o cuidado de fecharem-se as passagens
adequadamente.
— A sorte estava a meu favor! Pois, apesar
de o dragão ter tomado posse do lugar, eu ainda tinha um bom conhecimento sobre
toda a área: locais para aonde poderia correr, e possíveis elementos fixos ou
soltos no terreno que me serviriam de armadilhas. Uma vez que só contava com
uma tentativa, e esse mesmo artigo definido perecia maior graças ao meu
sentimento, ainda bobo, de retorno ao lar, levei 100 facas para a missão, equilibradas
em 50 de cada lado da sela de Ásirus. Dispensei o atual escudo que usava, pois
confesso que ainda me carecia a destreza, além de que o objeto poderia não ser
de tanta ajuda. No dia anterior, minha vó apareceu à dimensão e me entregou um
colar verde esmeralda, com acabamento em amarelo vivo. — Quer tivera sido por vaidade,
ou mesmo por recordações passadas, mostrou o presente enquanto o detalhava. O
rei já sabia o desfecho do conto que ouviria à sequência, mas nem por isso desdenhou
a importância do relato, e nem de quem o narrava. Gostava de imaginar as cenas e
poder se sentir um pouco mais livre e sem obrigações reais, e aquela experiência
seria uma ótima oportunidade para conhecer melhor a plebe, sempre moldando-se
em um bom e justo governante. — O objeto, circular no centro e com essas cinco
nuances em formato de pequeninas bolas ao redor, ilustra a efígie de um
resiliente animal. Repare em seu estilo rajado e em seu leve alto-relevo,
encaixando-se em uma extremidade alongada, a lembrar um pescoço. Melina me
confiou um talismã, e tal bênção me proporcionaria restaurações rápidas e
gradativas em vigor, o que seria muito útil uma vez que iria correr de galope a
cavalo e planejava enfrentar uma fera daquele porte. ...Você pode simular, e
até inclusive colocar em mesmo plano futuras e adversas condições que irá um
dia enfrentar, mas receio que nada disso corresponda à sensação real da hora
derradeira.
v
(...) E então, ele já montava seu cavalo.
A estatura do cavaleiro, com 1,78 m, tornava-se mais imponente em sua montaria;
mas os companheiros não passavam de bebês, frente ao colossal dragão de aproximadamente
23 metros. Apesar de todo o seu arsenal físico e inclusive mágico para o
desafio, sentiu que se precipitou em confiar no seu ínfimo estoque de apenas
duas curas rápidas para vida, sem garantia que restaurariam por completo a sua
saúde. A melhor arma que dispunha no momento era um machado, e, por mais
reforçado que estava, oferecia um alcance curto. E porque persistira àquela
lógica, outorgando uma missão para si de derrotar todos os dragões e criaturas
gigantescas da época? Deveras, era sim um grandioso feito, mas não seria tão
racional traçar tal caminho: em que os inimigos e armadilhas seriam maiores, as
estradas apresentar-se-iam mais longas e bifurcadas, e as recompensas obtidas
ao final de cada ameaça vencida ofereceriam migalhas não mais do que
insignificantes para um simples humano.
Mas... ele não desejava ser “apenas mais
um”. Os acasos dos tempos e das guerras não eram de ficar escolhendo, com
ética, suas vítimas; e o pequeno herói se viu indefeso em baixo de um alçapão
secreto, sendo forçado a se esconder enquanto aconteciam coisas lá em cima.
—
“Acredito que você já esteja bem grandinho. Pois bem, é chegado o momento” —
Lembrava-se ainda das exatas palavras da avó na cabana. Como se ali as
declamasse, em volume audível para si e como em prece para a chegada triunfal
da alada fera, manteve a calma. — 12 anos é uma idade auspiciosa, em que os
sonhos ainda estão maiores, contudo se veem próximos à confluência da fase
adolescente. Saudações, eterno viajante! A vossa viagem se aproxima. Nos
veremos em breve, em outras oportunidades.
Atravessou o portal... e lá se desenvolveu
até as obrigações futuras. Retornando ao seu plano de origem, pensou em
perseguir no encalço dos antigos ladrões que lhe privaram da liberdade anos
atrás. Contudo, com o amadurecimento e atitudes menos impulsivas e mais
ponderadas, supôs que os tais salteadores representariam tão somente a linha de
frente de algo maior: uma longa jornada de conspirações e interesses
oportunistas que poderia ser psicologicamente nociva a ele próprio, o moldando
segundo outras verdades e lentamente o desviando de seu propósito inicial.
Almejava, humildemente, seguir em paz a viagem; conhecendo outros povos e
desbravando outras distâncias, restaurando a esperança e os sorrisos de dias
melhores.
Voltando à cena, arremessou destramente de
suas mãos seis facas que se cravaram nas duas asas do animal, o
impossibilitando de se mexer por alguns segundos. A presa já se enfurecia e uma
grande bola de fogo varreu o ar em direção ao cavaleiro, respingando um vivo
rastro de fogo ao redor, queimando a plantação e acabando de destruir as ruínas
que ainda se mantinham de pé ao cenário. Atordoou-se por memórias, mas não pelo
ataque, que passou rente ao seu corpo graças ao galope preciso para a direita.
Rapidamente, soou um sino que lhe fora entregue, e do tal Mundo Cerúleo
surgiram dois pequenos goblins de pedra, munidos com projéteis e armas prontas
para combates a distância. Seu machado também furtivamente debilitou mais o
dragão, e em seguida o grupo dos desafiantes saiu dali, pois a fera já
recuperava a postura.
Mirando fixamente desde direções opostas,
o cavaleiro e o dragão incorriam um ao outro como se fossem dois aptos
competidores de uma prova de justa. As criaturas pétreas de suporte foram
eficazes no começo da luta, mas rapidamente acabaram por expulsas graças aos
ataques de asa e chutes do animal. As pequenas e curtas facas, que o viajante
tinha o cuidado de lançar sempre aos pares para ajudar a manter o seu próprio
equilíbrio e do cavalo, silvavam no ar como pássaros. Algumas realmente se
chocavam contra a sua pele dracônica, que, por não ser 100% protegida por
escamas duras e robustas, oferecia menor resistência. A fera era ágil e apta
para voos de diversas amplitudes, por isso teria de ter uma biologia adaptada a
tais condições. O brado da magnânima ameaça imperava medo por onde pousava, mas
parecia que o humano ao chão controlava bem seus passos, distanciando-se nas
horas certas e aguardando instantes silenciosos para mirar o machado às suas
patas.
v
— Mas, ainda me encontrava... como com
certeza diria vosso servidor “apenas em um esboço de início de jornada”. — Após
o conciso relato, permitiu-se fazer menção ao seu amigo petulante que conhecera
no reino. Pois, às palavras dele, o conto tornar-se-ia mais rebuscado, cheio de
adornos romantizados e talvez de fatos que até nunca existiram. —... A partir
do momento em que estamos no jogo, somos como peças que movimentam este
tabuleiro, mas nossos pensamentos e ações também têm o poder de reformular as regras.
Para mim, penso que os desafios, caso estejam no momento e no contexto certo,
revelam-se para nós aos mesmos planos das vitórias. Claro, temos de respeitar
nosso corpo e ouvir nossas internas motivações; mas nada melhor do que um
grande obstáculo para ratificar que somos capazes. Obrigado pela estadia, meu
rei. Permanecerei por mais algumas luas aqui, e depois seguirei viagem.
— O castelo, meus homens e as riquezas do
reino estão a vossa disposição. Obrigado digo eu pela história, muito me
aprazem contos e feitos heroicos. Em honra ao passado, marcharemos ao futuro!
As últimas chamas do reino apagaram-se e a
natureza se aquiesceu, restando apenas seus habitantes noturnos... E assim,
terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.
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