segunda-feira, 17 de março de 2025

O wyrm da montanha.

  

     (...) E então o herói estava viajando. Com seu cavalo, Ásirus, chegou a um povoado, que ficava próximo a uma montanha. Viu casas de madeira, e um vale vasto; posto em uma geografia azulada meio em tons de neve, mas que se harmonizava aos serpenteantes toques de verde em tempos de calor. Era uma visão linda e tranquila. Resolveu, logo, se aproximar.

     — Olá viajante! Diga quem é e a que vieste em nosso vilarejo.

     Ambos, emissário e destinatário da mensagem, apenas viam o refúgio ao longe mas não enxergavam com nitidez suas construções. Posto entre duas torres de vigia altíssimas, o cavaleiro localizou o homem, que estava em uma das janelas retangulares da edificação da esquerda. Concluiu que, a julgar pelos tamanhos e, também pelos tempos não tão amigáveis que se faziam, existiriam mais guardas no topo, revezando-se e em vigilância constante daquilo que sempre poderia ser uma ameaça.

     — Sou... um viajante solitário. Abarco vários títulos e alcunhas por onde passo, e tenho como verdade para mim que o nosso particular nome talvez seja uma mera questão que nos limita. Como o Senhor me chamaria?

     O homem certamente não esperava tal resposta. Depois de muito pensar e (de o cavaleiro muito esperar, pois já previa essa reação), olhares se encontraram novamente, e o emissário, afinal, deu-lhe o veredito:

     — A afirmação pareceu-me um tanto quanto ambígua. No entanto, não é normal dita eloquência e jargões lexicais a alguém de sua classe. Espera aqui! Chamarei um de meus superiores.

     E, o homem foi. O cavaleiro desceu de sua montaria, e ficou olhando o homem sumir no curso do trajeto. Ele, novamente, suspeitava que tivesse de esperar mais tempo; pois, assim como resguardava-se, o outro também fazia o mesmo, uma vez que ambos eram desconhecidos.

     Os vapores da manhã trouxeram a tarde, e tão logo, o vigilante chegou com outro homem gordo de grande barba negra e triangular. Também omitiu seu nome, apresentou-se apenas como um dos administradores do povoado.

     — ... Então, o Senhor para aqui em nossas terras apenas em busca de refúgio, descanso e comida. ...Ou é isso o que quer que acreditemos — ele falava por entre olhos fundos e preguiçosos. O cavaleiro, de escudo e lança vigilantes, alterou levemente seu semblante, mas depois aquiesceu-se. Era ele quem estava em posição inferior, ora. — Perdoe-nos a demora. Contudo, estou certo de que o cavaleiro não se importará em esperar mais um pouco, pois temos assuntos administrativos a tratar. Creio que não precise, mas as torres cuidarão de sua segurança. Até mais ver, meu bom homem.

     E, os dois se foram dessa vez e o viajante teve de aguardar mais alguns minutos para entrar. No entanto, a primeira fora mais enfadonha do que a segunda.

     — Olá. Saudações, quem aqui chega sem dizer-nos o nome... — Uma mulher alta de visão perfeita e cabelos negros veio-lhe ao encontro. Era Déhla, a superior do administrador gordo. Tinha uma voz mansa e cadenciosa, mas não menos inquisidora. — Dado por estes tempos e por sua eloquência, pode entrar; porém, sob aviso. Acompanhe-nos, por favor.

     Os quatro finalmente correram a passagem e, gradativamente, as casas e construções já iam se mostrando, ao passo que os problemas e a vida para além do refúgio ficavam como que alheios, do lado de fora.

     A vista aguçava-se pois a entrada carecia de portas (claro, dado o largo e comprido corredor, circundado por montanhas e fortemente vigiado interna e externamente). Déhla mostrou uma espécie de carta, contendo talvez a permissão para o cavaleiro entrar, umas quatro ou cinco vezes. Os dois primeiros de início ainda fizeram caras de desdém, o terceiro de preocupação, e os dois últimos obedeceram rapidamente a ordem. Deveriam ser homens mais próximos aos assuntos de gestão do povoado, visto que claramente ali imperava uma gradativa hierarquia.

     — Já nos adiantamos a informar nosso rei. A audiência está marcada para à segunda hora da tarde. Um subordinado meu acompanhará em sua visita — e, sem dizer mais nada, virou-se de costas e foi embora. Ele ficou sozinho por um instante, uma vez que os outros dois (o homem gordo e o vigia da torre) já tinham ido realizar seus afazeres. Como bem se apresentara, aprazia-lhe a ideia de estar só; mas logo um petulante homenzinho pequeno se aproximou sorrindo satisfatoriamente. Ele o contaria que estava lá para ser seu cicerone; isso, e tantas outras coisas mais...

     O viajante desejava algo mais objetivo e certo, sem desvios como uma “caminhada amigável” pelo povoado. No entanto, viu que não havia hipótese, e consentiu. Não era necessário, mas para criar certa imponência e distanciamento, subiu ao cavalo e vagaram até dar o tempo necessário. Por vezes, o outro parava absorto em seus pensamentos: talvez por estar escolhendo as palavras certas, ou ainda porque admirava aquela atípica figura do forasteiro em cima de cavalo.

     Graças às duas recém passadas adversidades de espera, aquela pareceu distintamente mais tranquila. Não obstante o servidor perseguisse o cavaleiro como se fosse um inimigo feito em suas viagens, a espera foi, sim, agradável tendo-se em vista aquela paisagem leve e montanhosa.

     — Uh...! Já não era sem tempo. Faltam vinte e cinco minutos para as duas. Alcaide Déhla permitiu teu ingresso ao castelo, expressamente acompanhado por mim, apenas no interregno de vinte e cinco minutos restantes para a reunião. Vamos entrar!? Ou, caso desejes, poderemos ainda permanecer aqui para uma ou outra coisa rápida. Ou ainda, ingressar-nos-emos agora e neste minuto, e eu lhe contarei sobre histórias desse povo. Mesmo em tempos de folga e ócio, não é bom ficar sem nada para fazer, pois é preciso exercitar a mente. — Ele se punha fixo à figura do cavaleiro, os olhos porém meio que mareados e as pupilas dilatadas de felicidade. — Creio que aprecies palavras rebuscadas e histórias bem feitas. O que quer fazer, meu bom homem?

     — Iremos entrar, mas com uma condição: a de permitir-nos o silêncio. Atente para o lugar em que está entrando. Castelo não é vila... Exige-se respeito e cordialidade. — Ele desmontou de sua montaria e ela, revelando agora não ser um cavalo comum, esvaneceu-se no ar como fumaça. O outro que os olhava logicamente ficou ainda mais perplexo, mas uma vez que já iam subir e aquela explicação poderia demorar (ou mesmo o reservado homem talvez não quisesse falar), optou por introduzir o assunto em outro tempo. Devido ao contexto, esforçou-se apenas em dizer:

     — Tens razão, meu bom homem, tens razão. Permanecerei ainda ao lado vosso, mas em postura introspectiva e mais séria. Obrigado por alertardes-me. — E ambos finalmente galgaram em passos rápidos os degraus. Será que o servidor iria começar a tratar, ainda erroneamente, o forasteiro por “vós” ao passo de “tu”, tentando talvez instaurar uma nova hierarquia e formalidade entre eles? Pelo memos poupar-lhe-ia o silêncio... ou... vai saber.

     Os guardas da porta não fizeram objeção quanto à passagem; mas alguns empregados se aproximavam, requerendo informações, como se dissessem: “Não podeis entrar aqui”. Ao que parecia, não constava entre as atribuições de dito servidor fazer visitas ao castelo; e, de igual forma, ele teve de descer a explicações. Contudo, aquilo era bom: satisfazia o ego do viajante, ao passo que impedia o homenzinho de contar histórias e lendas do povo, que seriam imperdíveis e inusitadas segundo ele.

     Exatamente no tempo previsto, prostravam-se diante da porta real. O petulante servo entrou com o “novo amigo” a passos demorados e decididos.

     — Olá, nobre cavaleiro. O Senhor para, por longo caminhar, a estas terras longínquas em busca de auxílio e descanso. As atitudes de meus subordinados foram corretas: antes de permitir entrada a Vossa Senhoria, consultaram seus superiores hierárquicos a fim de averiguar se seria adequado ou não tal pedido. No presente momento, o Senhor adentra estes domínios reais para ratificar tal permissão; sendo que, possivelmente, espera que a ordem se estenda por mais um ou dois dias, ou até mesmo igual período de luas, dependendo do cansaço e das fadigas de Sua jornada. Permita-lhe, contudo, propor algo:

     O rei, que estava sentado em seu trono feito em dourado e pedras reluzentes, levantou-se comedidamente e foi ao encontro do viajante. O servidor ao lado estacou-se também. Na certa, jamais estivera tão perto de seu rei assim.

     Emitiu, em alto e bom som, comando para que todos saíssem (o que foi um alívio para o cavaleiro). Permanecendo os dois a sós à grande sala, ele continuou:

     — O que venho a lhe informar é um assunto sigiloso. Como posso ver que Vossa Senhoria é um homem reservado, creio eu que não terei problemas em relatar-lhe, estou certo? — Parou à voz, e esperou até que o cavaleiro confirmasse fazendo qualquer sinal. Após, indicou-lhe uma mesa circular de pedra, que apoiava um pequeno jogo de xadrez e estava em frente a uma lareira. Ao redor, faziam-se sempre prontas duas cadeiras de metal prateado e ricamente acolchoadas em couro azul-escuro, com braços trabalhados para descanso de nobres. A audiência, então, poderia ser longa ou rápida, dependendo do teor de tal assunto.

     — Muito embora desconheçamos, em parte, a respeito do Senhor, aqui se põe agora como hóspede em meu reino e em nossas terras... — Ele não olhava mais para o cavaleiro, e em um pensativo e estratégico ângulo agudo fitava de forma aleatória peças do jogo, sem iniciar movimento algum. — Somos, ainda nestes tempos sombrios e de ameaças, um território pacífico e prezamos pela neutralidade. Porém, éramos um povo muito mais próspero e alegre no passado; e o que experimentou ao chegar aqui é indício disso. Ainda conseguimos nos manter em paz, mas a um preço alto: o isolamento. O que pôde parecer certa descompostura, foi-nos burocraticamente necessário analisando o contexto. — E fez um esboço de jogada, mas não um movimento válido. Andou com vários peões de uma só vez e os isolou à esquerda de seu campo, no centro superior do tabuleiro desde onde enxergava. As peças ficaram ali, voltadas para o calor e para o fogo da lareira. — Quero que Vossa Senhoria distancie o olhar deste jogo por um momento e repare no acento real com pedras. Após, percorra com olhares esta grande sala e depois encerre Sua visita a estes objetos feitos de metal e prata. — O rei se colocava realmente receoso e preocupado. Não apenas em saber quem era o hóspede, mas com certeza atormentava-lhe algo maior. — Os peões que separei nesta extremidade representam homens de nosso povoado. Em jornada, o amigo observou a colossal cadeia de montanhas que circunda o vale, certo? ...Pois bem, subíamos a diário tais relevos para extrair minério. — O ouvinte não tinha tanta paciência para ficar ouvindo histórias, e as pausas o fizeram lembrar do petulante servidor. Pelo menos, os relatos eram importantes, não fantasias ou alucinações de uma mente menor. — Reinávamos eu e a prosperidade. Detínhamos grande parte dos recursos naturais da região no passado e até algumas de nossas construções podiam se dar ao luxo de serem fortificadas internamente com nosso aço e nossas pedras de forja, não somente armas. Mas... nem todas as riquezas atravessam os anos, e temos de admitir agora que nos imperava a ganância. Contudo... veja bem: qual ser humano não se deixaria levar pela esperança de melhoria contínua, visto que, em nosso reino, abundavam tais materiais?

     O ouvinte já se perguntava quando poderia interferir. Achou ser aquela uma hora propícia; mas não para responder a tal pergunta do rei (retórica segundo o cavaleiro). Ousou abrir a boca para falar:

     — Vós dizeis “nem todas as riquezas atravessam os anos”. Receio pensar que nada atravesse, apenas a memória...

     — És um homem sábio, cavaleiro. — disse ele comedidamente e, apenas agora, mirava o visitante bem nos olhos. O monarca, em posição indubitavelmente maior, poderia achar uma afronta e até mandar prender o homem, mas não o fez e nem achou porque era claro o contexto: ele precisava do forasteiro para algo. — ...Muitos homens subiam e desciam as montanhas, e até instalamos acampamentos nas terras altas. Mas... conforme fomos avançando, escutávamos barulhos do interior de uma em específico. Ficou-se com medo de avançar. Mas, um dia, eu mesmo emiti o veredito para extrairmos o máximo que nos fora agraciado. Esse foi o meu erro: a sede de enriquecer.

     O forasteiro pressagiava algo escondido na história. Mais ainda, quando o “jogador” retirou o próprio rei e a rainha de seu campo de xadrez e locomoveu as peças para junto dos peões, que se subentendia terem galgado o cenário há anos.

     — ...Para resumir, conseguimos escapar quase ilesos. No entanto, hoje reconheço que, se nossa filha, Tamara, não desobedecesse as minhas ordens e, insensatamente, não viesse em nosso auxílio... Deveras! Não sei o que poderia ter ocorrido.

     Ele parou e ousou tocar, como um conhecido muito próximo, as mãos do soberano. Elas estavam frias e arredias, mesmo perto do fogo. Qualquer um, naquela posição, mas que demonstrasse certa fraqueza, por mínima ou familiar que fosse, era tido em escárnio e desacreditado. Razão pela qual o pai não falava dos acontecimentos, e terminantemente proibia quem também os presenciara até mesmo de se lembrar.

     — Já viste algum membro da alta corte chorar? Por obséquio, eu lhe rogo que esta conversa não a partilhe com ninguém. Não é de nós esperado...

     — Certamente, a fim de imperar poder e distinção, não vos é aconselhável mistura. Mas, sois mortais também! — Deteve-se na expressão, achou que estava falando demais. — Perdoai-me a descompostura, meu rei. Trabalharei para que não aconteça de novo.

     — Vejo em Vossa Senhoria um homem bom, cavaleiro. Um homem sábio, valoroso, e bom. — Estava triste, enxugou seus leves deslizes e depois falou: — Quisera eu que, não tão somente rei, fosse Deus, o Todo-Poderoso e dono do destino; ou mesmo me fosse possível mover esforços a fim de obrar esquecimento para certas almas. Mas... fatalidades acontecem. E espera-se de um grande homem que vença suas adversidades.

     Teatral e atipicamente, o narrador do fato aproximou-se da janela, observando através do vidro algumas flores do jardim. Seus olhos fixaram-se em um arranjo de lírios-do-vale e papoulas, as favoritas de sua filha. Elas evocavam imponentes estandartes vermelhos de coragem e a fragilidade humilde de anjos em prece.

     O convidado, circunspecto no assento, apenas esperou o rei voltar. Cada passo era difícil, e enquanto caminhava ele louvou por “apenas um desconhecido” presenciar sua debilidade. Uma vez de volta ao jogo, continuou:

     — Nós nos amávamos muito, eu e minha esposa. Ouso dizer, mais do que qualquer casamento arranjado pode proporcionar à vida de duas pessoas que jamais se conheceram. Mas, como bem me deixou a entender há pouco, nada é para sempre! Ellene, minha tão nobre e querida consorte, partiu de outros agraves, tempos depois. Ficamos só eu... Eu e Tamara... aqui neste castelo imenso!

     Aquele que o ouvia manteve-se em um misto de tristeza e esperança: condoía-se pela morte da rainha, contudo quis eufemizar a memória do rei, lembrando que o fruto daquele amor estava vivo. Deveriam ser muito próximos, e, embora a afronta, o rei educou a filha como tinha de ser.

     — Pode ver Tamara em meu grande anfiteatro interno, talvez sentada de lado a olhar calmamente para as águas que correm o salão. Ou ainda esteja ao jardim de inverno, que ornamentamos cobrindo o inteiro lado direito e a parte de trás do castelo. Tais arquiteturas lhe trazem liberdade; recordando o nosso poderio de eras passadas.

     Após relatar, em parte, a difícil história para o forasteiro, o rei se despediu de forma cordial, dando uma ordem disfarçada sob a aparência de possibilidade. Resolvera também aumentar a permissão anteriormente concedida ao cavaleiro, e agora este adquirira maior mobilidade ao castelo e ao reino, distanciando a necessidade quase insuportável de ser seguido por um servo qualquer aonde quer que fosse. O hóspede levantou-se calmamente e saiu, decidido a se inteirar dos fatos.

     Percorreu o inteiro aposento, atravessou as portas, e passou pelos guardas reais sem ter de parar para satisfações ou esclarecimentos. A caminho dali, ele e o servidor cruzaram uma grande e suntuosa sala retangular ornada em ouro e prata e decorada com tecidos e estandartes azul-escuros. Apenas fez o caminho inverso: Tamara já se encontrava lá, em postura e semblante totalmente conformes às descrições que lhe foram feitas.

     — Princesa, vosso pai, o rei, falou-me sobre Vossa Alteza. Estou honrado nos ter sido permitido tal encontro.

     — Vossa alcunha de “o cavaleiro sem nome” já se espalha como fagulha em meio à plantação. Tendo já estado à presença de meu ilustre pai, bem sei que se trata de uma pessoa digna — dissera as frases todas ainda em mesma postura, ratificando a distância entre eles. O visitante respeitou.

     Não se falou mais nada e somente se ouvia o fluido som das águas correntes, irrigando harmonicamente todos os lados do salão. Ele mantinha certa hesitação em dirigir a palavra à filha do rei, porquanto não se conheciam, e ainda mais por ser o próprio soberano quem dispusera tal encontro.

     — Provavelmente, o rei enxergou no Senhor uma oportunidade. — Ambos, por serem pertencentes às altas camadas sociais, eram decididos. Contudo, o forasteiro achou a filha mais objetiva que o próprio pai, por ir direto ao ponto. Já emitia os seguintes dizeres com olhos bem voltados à curiosa figura. — Permitindo-me a franqueza, todos os homens do rei são uns fracotes. No passado, eram mais pomposos e até petulantes, mas desconfio que já se enquadrem hoje aos plebeus.

     O monarca não mentira sobre as qualidades de Tamara, e sua audácia era estampada até mesmo em suas escolhas lexicais. Relatou os anos de prosperidade, mas, sem rodeios ou comparações desnecessárias. Encarando as sortes do destino, passou às adversidades do reino: relatou como as subidas às montanhas ficaram cada vez mais perigosas, reforçou as atitudes um tanto persuasivas de alguns daqueles homens ao tentar convencer o rei a deixar o posto ao castelo; e, por fim, com certa inegável satisfação, descreveu sua própria incursão para salvar os dois. Segundo a nova autoridade, fora bom pois ali os demais de lá de cima revelaram seus “verdadeiros valores” diante de um grande perigo.

     O cavaleiro encontrara alguém ímpar, com atitudes criteriosas e fortes, dignas de status da realeza, e de uma possível grande monarca. Ele perguntou se a princesa tinha irmãos, e após um leve desconforto ela respondeu que não, o que a faria sucessora direta do pai. Era estratégica em palavras e atos, digna de liderar um povo, e não se deixaria dobrar por propostas vãs ou curiosidades alheias como descobrir “o que se escondia à montanha”. No entanto, não desejaria governar, e aprazia-lhe mais a ideia de defender seus ideais e o reino na prática do que pura e simplesmente refugiar-se no castelo, aparecendo somente quando necessário. Não se perdia, claro, o rigor necessário à formalidade, mas a conversa foi se equiparando naturalmente à fluidez e à transparência das águas.

     — Cavaleiro! Acredito que o momento tenha sido auspicioso, mas creio também que a atenção às horas é agora uma questão de necessidade. Não me sinto à vontade para dar ordens por agora, mas eu lhe aconselho ter-se novamente com meu pai. Provavelmente se encontrará na mesma sala do trono.

     Despediu-se conforme o contexto, e então errou para os aposentos reais. Lá chegando, o rei, que estava pensativo ao centro, perguntou-lhe se conhecera Tamara, quis se inteirar sobre o ritmo e o teor da conversa, e buscou captar através dele sobre o que a filha sentia no momento; pois eles não se falavam muito como antigamente.

     A conversa permitiu-se ser amistosa, mas em tom solene. Fora mais rápida do que a anterior, ou mesmo o cavaleiro não sentira tanto porque os assuntos foram bem objetivos no anfiteatro. Bem imaginara que ela deixaria seu ego falar mais alto, narrando sobre sua já sabida aventura épica, e não desceria a assuntos adjacentes, como o futuro falecimento de sua mãe. Tamara tinha um ego inflado igual ao do pai, mas qual nobre não gostaria de contar vantagem sobre si, enaltecendo sua própria figura, ora?

     — O sol já começa a tanger o Oeste. Partiremos ao encontro de minha filha. Pretendo finalizar nossa reunião com ela presente, uma vez que assumirá quando eu vier a repousar.

     E, eles voltaram. O forasteiro, por entre passos mais firmes que os do rei, recordava-se da longa espera para entrar no pacífico reino. Contudo, mantinha o foco às inferências atuais: por qual motivo um grande monarca necessitaria de companhia para falar com a própria filha, e, ainda mais, de alguém estrangeiro?

     — Minha doce e amada Tamara, regozijo-me por vós e nosso hóspede vos haverdes portado com esperada cortesia. — Tão logo o soberano entrou, localizou a filha de costas, sentada em uma cadeira alta de madeira, voltada para uma parede em alto-relevo. Ele emitiu, em voz forte, a sentença e deixou transparecer que talvez não tivesse perdoado a antiga ofensa, mas, de igual modo se via deverasmente alegre ao reconhecer que herdara dos pais a coragem e a responsabilidade frente aos fatos. — Vossa atitude nos trouxe consequências, sabeis bem. No tocante a nós mesmos, e ao povo de nosso reino. Caso permanecêssemos após o fato na mesma relação pai-filha, tal atitude poderia não ser vista com bons olhos, uma vez que, como rei, devo agir com pulso firme enquanto autoridade máxima. — O cavaleiro que tudo observava achou válida aquela explicação, e esperava para ver como o rei continuaria a fala, que evocaria reminiscências e poderia certamente ser longa. Todo o salão conservava seu ar característico, porém, uma coisa não estava em conformidade. Seus instintos procuraram, mas não souberam identificar o quê. —  Muito me queixo sobre isso, mas o contexto não me permitira outro jeito. Em minha posição, o embargo fora a mim burocraticamente necessário.

     O pai andou alguns passos para frente e tocou o ombro esquerdo da filha. Seus olhos, porém, mantinham-se fixos à linha do horizonte, e admiravam a linda pintura na parede. Somente após, desceu os olhares à princesa.

     — Tamara... Tamara... Oh, céus! O que aconteceu?

     A calidez dos lírios... enfim encontrou repouso para o coração da nobre. Seu tronco e sua postura ainda se colocavam eretos e firmes como colunas, mas seus olhos e sua vida já eram distantes como as águas que se perdem no vasto horizonte.

     O cavaleiro logo quis consolar o rei, porém este levou a cabo uma atitude mais rápida. Tão rápida e impulsiva como há muito não tivera.

     — Patife! Confio no Senhor, e é assim que retribui minha hospitalidade? Guardas... prendam-no!

     O grande anfiteatro, antes vazio e ocupado apenas pelos três, começou a se encher de subordinados do monarca. Deveriam ser de cinco a oito homens, todos armados segundo a ocasião e visivelmente satisfeitos por estarem executando aquela ordem específica.

     Eles, de espadas e escudos em punho, foram de encontro ao forasteiro. Este, porém, não se abalou, tampouco adotou uma postura igualmente ofensiva. Desvencilhava-se dos golpes e apenas defendia, usando toda sua perspicácia e estratégia.

     — Diga-me vós, ó grande soberano: qual motivo teria para incutir contra vossa filha?

     — Deveras, desconheço ainda os seus propósitos, mas... o cavaleiro há de convir que: a simples presença de Vossa Senhoria evoca mistério.

     — E tão somente por optar por um particular sigilo sou tido como inimigo do reino? — Provara da mesma ira de quando estava à segunda espera para entrar nas terras. Olhou para sua mão esquerda, mas depois pensou melhor e não o fez. — Como desejais, faremos assim: instalar-me-ei nas masmorras do castelo, enquanto sondais sobre o que acontecera de fato. Estou certo de que sois um homem justo...

     Aproveitando a oportunidade, o servidor mais próximo do visitante chegou com uma grossa corda e amarrou suas mãos. Por entre olhares perplexos e um tanto quanto irônicos, como se dissessem “que tolo, ele realmente acha que irá atenuar sua pena ao se entregar”, viram os dois saírem rumo ao subsolo. Em seguida, o rei ainda de olhos fixos na princesa ordenou que os demais também se ausentassem, e assim ficou a sós com suas lembranças.

     A visão das outras alas do castelo afirmava o poderio e a imponência da construção. Deixaram a sala por uma passagem secreta lateral, que se abria e se fechava pressionando levemente as mãos contra a parede, como se mergulhassem na tal pintura em alto-relevo. Usaram outra rota para alcançar a sala do trono: um atalho sufocante, mas silenciosamente menor. Passaram por ali sem cerimônia e logo caíram em um largo corredor de atmosfera cálida e amplas janelas de vidro, as quais fizeram o hóspede lembrar-se da cena em que o rei via as flores no jardim. Gradativamente, as vidraças foram sumindo e aparecendo mais portas de metal, que eram fortificadas com chapas de aço nas laterais à medida que se avançava. A umidade e a calmaria das águas de antes contrastava com o ambiente seco e intimidante dos candelabros que agora se enxergava.

     — Espero que o Senhor se instale bem. — Fez essa afirmação, logicamente sarcástica, enquanto o desarmava por completo. — Aproveite a estadia, quem aqui chega sem dizer-nos o nome...

     Sem oferecer resistência, o prisioneiro foi desamarrado e acomodou-se de cara fechada à cela. O subordinado do rei subiu depressa, e, intencionalmente ou não, lançou um ar a mais de tensão à cena. Ficou a sós, fazendo uma conta rápida de cabeça para descobrir a real extensão do cenário. Estava em uma câmara pequena e baixa, cujo teto era sustentado por dois arcos de pedra marrom. À sua direita e à sua esquerda havia similar arquitetura, ambas vazias. Apesar do mal-entendido horas antes, mantinha-se confiante e ciente de suas ações. No entanto, já era noite e a escuridão tomou conta do lugar, trazendo consigo uma sensação de tristeza. Não sabia quanto tempo mais gastaria ali.

 

v   

 

     “Estou certo de que sois um homem justo”. Repassava o homem ao registrar oito ciclos inteiros à parede mais ao fundo da cela. Sua barba estava começando a crescer e, pela comida que lhe forneciam, achou-se um pouco mais magro.

     Suas únicas companhias eram o seu próprio eco e a alheia solidão, uma vez que não havia tanto o que fazer, muito menos o que guardar, nas masmorras. Sem janelas e nem aberturas, era difícil esboçar o passo do Sol aos céus, mas ele apostava que já seria depois do almoço, pois um servidor louro tinha acabado de deixar um magro repasto ali.

     — Ei... Psiu... Olá, meu bom amigo. Parte o meu pobre coração saber que estais aí há tanto tempo.

     Uma figura de capa e capuz escuros correu até a grade tão logo percebeu que estavam sozinhos. O prisioneiro não precisou de muitos esforços para identificá-la: só um alguém no inteiro reino se referiria ao cavaleiro pelo pronome “vós”.

     — Ah, és tu. — Optou por um tratamento errado também, não tão somente porque o servidor lhe tinha dado respaldo, mas ainda para inferiorizá-lo e afastar a proximidade. — O que vens fazer por aqui?

     O servidor sentiu-se honrado por, segundo o próprio, ser mantida a relação de amizade entre eles. O esquema de segurança dos pisos inferiores era um tanto quanto falho, mas o petulante homenzinho de mesma forma não se demorou. Atitude, ainda que sem ter base estratégica sólida, o cavaleiro reconheceu.

     — Vossa situação não é mesmo muito conveniente, além do contexto em que apareceis nestas terras. Porém, alegrai-vos! Estou intercedendo junto ao rei para que não haja algum julgamento precipitado. Ah! E fiqueis tranquilo pois vossas armas estão em segurança em minha casa, um pouco afastada do castelo mas ainda na cidade, escondidas de olhares de escárnio. — E, assim, ele se foi. O prisioneiro, ainda que não esperasse jamais tal visita, ficou surpreso em saber das qualidades furtivas do rapaz, e poderia traçar, através do fato, um plano de fuga caso a situação se delongasse sem motivo.

     A cabeça do cavaleiro se inclinava contra ao chão, e seus olhos apenas viam a poeira do lugar, nada mais. Porém, seus pensares se dirigiam ao alto, buscando prever o que o rei faria, e qual seria exatamente o grandioso assunto que lhe seria revelado dias atrás. No entanto, a comida, por mais insípida que fosse, logo esfriaria... Apartou-se dos assuntos alheios, pois realmente não os controlava, e ingeriu a refeição. Fez alguns exercícios de luta para manter o corpo aceitável, dentro da medida que lhe era possível.

 

v   

 

     — Cocheiro, muito nos falta para vislumbrarmos o reino?

     — Não, Senhora! A torre leste de vigia já se deixa ver no horizonte. A este ritmo, ali chegaremos antes da oração matinal.

     Rosselle, a dama de companhia da princesa Tamara, voltava ao reino após um período com sua família em um vilarejo perto de uma floresta. Ausentou-se para ver sua mãe, já de saúde frágil pelos anos, enquanto folgava do rigor das rotinas de ofício e oferecia apoio para as suas duas irmãs. Graças aos Deuses, a matriarca melhorou sem demora; mas, ao atravessar as fortificações de segurança, notara um mau presságio nos olhares de alguns.

     Cruzava as ruas já desconfiada do que poderia ter acontecido. Pessoas a paravam para saber da viagem ou para distraí-la com conversas simples; outras apenas a seguiam com olhares evasivos e tristes. Fez ainda compras no mercado, utensílios de que precisaria no castelo, e galgou a escadaria cumprimentando os guardas como de costume.

     — Meu rei, em nossa tenra existência, passamos por diversificados momentos: alguns bons, outros não tão agradáveis. Cumpre-me informar que minha mãe passa bem, porém certa inquietação aflige meu coração quanto ao que possa ter ocorrido em minha ausência.

     — Aquele que começara a executar tal plano já se encontra preso. Receio ter cometido um deslize ao confiar no homem, ainda mais sendo um forasteiro...

     — Desculpe-me... Perdão, meu rei. De quem falais?

     O monarca estava de frente para a dama de companhia, mas pôs-se a olhar a janela e correr com os olhos novamente o jardim. Não sabia discernir ao certo o que sentia: se era fúria por ter deixado um desconhecido a sós com Tamara, ou se acreditava ser todo o fato uma oportunidade que o destino os concedera.

     — Logo após deixardes vossos afazeres laborais, minha cara Rosselle, um tal cavaleiro sem nome avistara nossas terras, e sua petulância o fizera adentrar em meus domínios. — Ele gastou mais tempo admirando as flores, e depois tornou os sentidos à criada. Aquilo, mesmo ao aposento fechado, permitiu renovados ares ao soberano. — Acredito que não conseguisteis esquecer da fatalidade que a princesa lhe contara... É uma dádiva o fato de que sois muito próximas, e me apraz saber que esse vínculo se estreitou com o passar dos anos. — Evocou, em eufemismo, a memória da rainha. E, sim, a servidora fazia esse papel de bom grado; embora, logicamente, não a substituísse. — Sabeis sobre como se deu continuidade à nossa relação pai-filha após os tempestivos dias. Logo, a princesa passava mais tempo sozinha, a errar nosso jardim de inverno e, em todo este grande castelo, seus próprios aposentos e nosso anfiteatro, construções que lhe transmitiam paz e coragem.

     Reiniciou o discurso, ainda que próximo e amigável, não de forma aleatória, mas sim de maneira estratégica. E suas palavras realmente deixaram a destinatária preocupada, um pouco com culpa por ter se ausentado das funções. Mas, ora, muito tinha trabalhado nos últimos dias, e um familiar em tal estado requeria digna atenção. No entanto, aquilo não era verdadeiramente uma ofensa, somente uma chamada de atenção.

     — ...Ah, os bons momentos que passamos com Tamara... Vossa filha era uma menina meiga, e destemida, a seu ponto. — Tendo aprendido já a conviver com os leves desgostos em meio à corte, resolvera amolecer mais ainda o coração do rei. — As copiosas e fortes qualidades da princesa vêm de berço, e seu gênio de liderança está inato em sua gênese como púrpura de polvo que se fixa eternamente em vestes reais.

     O monarca sorriu por entre os lábios e a memória engrandeceu sua alma. Contou o que aconteceu e, sobre como achava ter se sucedido o desfecho, para a criada. Os detalhes e as inquebráveis relações familiares faziam-no demorar, como alguém que visa segurar as palavras à boca para não ter de contar o inevitável.

     E o relato caía de forma árida e cruel no coração da ouvinte. Ela, em vista de sua classe, não se preocupou em chorar. O rei, por sua vez, já conseguia esconder os resquícios da dor, uma vez que estava com uma pessoa que convivia diariamente, além de já ter tido o seu momento, em silêncio.

     Humildemente pediu ao soberano para que ela mesma descesse às masmorras e falasse com o tal prisioneiro. Ele consentiu, solicitando que assim lhe transmitisse também suas desculpas reais; já tinha passado, deveras, algum tempo, e ele priorizava outros assuntos que, administrativamente, teriam mais urgência. Rosselle foi, mas antes de se dirigir aos andares inferiores, passou aos aposentos da princesa como o normal de toda manhã. O quarto se conservava intacto e imune às adversidades do tempo... nem mesmo as janelas estavam abertas. Ajeitou celeremente as coisas como se Tamara estivesse lá, e tomou novo ar para enfrentar a futura conversa. Descendo, concluía mais ainda que o rei, apesar de exímio e estratégico governante, mostrava sua fragilidade ao tratar de assuntos de família. Isso se evidenciava tanto pela postura de não entrar no quarto, emitindo ordem para terceiros também não o fazerem, quanto pelo recém pedido à criada, pois optava por sentar-se ao trono ao invés de encerrar de uma vez aquele difícil impasse.

     Lá embaixo, ele terminava de correr em círculos à cela, concluindo como podia seus exercícios matinais. Não havia muito o que fazer sob aquelas condições, e o cavaleiro até começava a sentir falta de seu “amigo” servidor, o petulante homenzinho. Passava a maior parte do tempo sozinho, e os guardas faziam questão de reforçar sua solidão para mostrar zombaria e poder, lembrando-o ali não passava de um estrangeiro.

     Os escassos e únicos esforços que o rei movimentara sobre o caso foram apenas dois: A atitude de preocupar-se com alguém enviado à prisão, além de selar um decreto que fez seu próprio conselheiro varrer áreas adjacentes ao castelo em busca de informações sobre o tal homem misterioso. Transcorrido o tempo estipulado para a missão, o servo retornou sem alguma novidade ou pista sequer. O fato corria timidamente, tão vazio como a poeira do lugar mal iluminado.

     — Forasteiro sem nome, olá. Sou Rosselle, a dama de companhia da princesa Tamara. — A figura que se aproximava trajava vestes claras, em oposição aos detalhes da roupa do outro visitante, quatro dias atrás. Sua voz era firme, mas não hostil, carregada de uma autoridade delicada. Ao caminhar em direção ao prisioneiro, os passos soavam como uma orquestra silenciosa, controlados e precisos, o que indicaria controle da situação. Quando parou à frente dele, inclinou levemente a cabeça, apenas o suficiente para transformar a saudação formal em algo inusitadamente pessoal.

     — Então, já sou digno de que Sua Majestade envie hoje um de seus próximos a fim de... solucionar o caso? — Ele também adotara uma postura firme à voz. Um tanto quanto irônica, de fato, mas porém carregada de verdade e justiça pela escolha das palavras “já” e “hoje”. — Novidades acerca do reino ou dos agraves que Vosso rei começara a me contar?

     Ela enxergou que a efígie daquele cavaleiro maltrapilho refletia um semblante forte e resiliente frente aos infortúnios do acaso. Ambos repassaram rapidamente suas chegadas, e finalmente foi a atual visitante, uma simples serva da alta nobreza, quem teve a coragem de aclarar toda a situação para o visitante:

     — Antevejo que o Senhor tenha conhecimento das adversidades que podem acometer os viajantes, sobretudo os menos atentos. — O final da frase foi um teste: ficou esperando que o cavaleiro esboçasse um sorriso de vantagem. Aliviada, não notou alteração em sua face, e a conversa transcorreu como o previsto. — Existem dois tipos de envenenamento conhecidos: os normais, que fazem a vítima perder suas forças gradativamente, e as ditas toxinas, operando aos humanos uma debilidade maior e mais rápida em alguns casos, de acordo com o tipo de animal ou ameaça que os tenha atacado. Algumas luas após o ato heroico da princesa em salvar os pais, seus valores e coração reais a impulsionaram a traçar um plano, no qual ela mesma subiria ao coração da montanha para derrotar a ameaça. No entanto, por um aviso travestido em adversidade, contraiu veneno de harpia durante o curso do caminho. Sem recursos atuais para cura, teve sábia decisão em voltar. Mas com a promessa velada de, claro, continuar depois.

     — Receio, pelo que falais, que outros padeceram em igual tentativa. — Iria acrescer a expressão com “outros tantos”, mas não o fez, pela mesma cordialidade ao conservar-se incólume após anteriores dizeres da criada. A escolha por “padeceram” suavizou a cena, e deu mais solenidade também às memórias dos que teriam partido. — Tendo agora como escassas essas almas ao reino, suponho que o rei desejasse confiar em minhas capacidades para fazer frente a tal inimigo, e, assim, retornasse com a prosperidade a estas terras.

     O prisioneiro estava triste, sim, pela morte inesperada de Tamara; porém, as sombras e fumaças de antes já não lhe pareciam tão impenetráveis. Agora poderia trabalhar mais em sua própria defesa (caso um fato novo lhe fosse permitido) e, apesar de não acreditar muito em encontro dos astros ou profecias, errava ao enxergar sua estadia lá como algo novo que tinha de ocorrer.

     O cavaleiro fez um esforço também para tirar os olhos das grades que os separavam e repousar sua mirada ao rosto compassivo e direto da criada. Podia concluir também que, o rei não incorrera em ofensa ou injustiça alguma contra sua pessoa graças aos assuntos que Rosselle agora lhe revelava. O cavaleiro optou, então, por falar menos dele, enquanto buscava se inteirar mais do fato:

     — Em todas as minhas viagens e andanças, não conheci alma feminina tão valorosa e digna quanto a da princesa, Sua Alteza. — Fez uma reverência, mesmo que ela não fosse a real autoridade da sentença. A dama apreciou sua atitude respeitosa, e se sentiu honrada de ser comparada à rainha por mais um último instante. — Respeitosamente peço perdão, mas desejo saber: Tamara chegou a ver o que lá se escondia?

    — Sim. Em sua primeira incursão, ainda havia um número considerável de homens ao trajeto, e a constante vigilância impedia os monstros de se proliferarem ali. A expedição real já tinha entrado, com apenas alguns soldados montando guarda à entrada da caverna, caso algo externo lhes ocorresse. A destreza de minha senhora em armas era incomparável e conseguia a façanha de abater até mesmo o vento em agilidade, e fora isso que a fizera entrar; o que, para mim, vale mais do que qualquer levantar de alabardas de quem apenas vigia portas ou entradas de gruta... — Ela foi ácida e demonstrou uma postura mais séria em suas últimas escolhas lexicais. Ao que parecia, a filha também herdara o gosto por um maior detalhamento de cena, mas com um enfoque mais objetivo e sem tantos desvios em comparação ao pai. A perspicácia da princesa a tornaria boa estrategista, trabalhando por visualizar possíveis atalhos em mapas, talvez jogando com o ambiente e os elementos do cenário ao seu favor. Mas, por infortúnio (o qual todos inevitavelmente passariam), a luz deixara seus olhos muito antes daquilo tudo se concretizar... Mas, que bom, conviveram em harmonia, e aproveitaram dos momentos bons. — Os musgos das paredes da caverna e o som das águas que serpenteavam pelas rochas a fariam lembrar-se de casa, se estivesse sozinha e em uma situação mais tranquila. Porém, o clamor das espadas e escudos ecoava pelo cenário circular, e o chão ainda com resilientes plantas tremia sob o fluxo do magma derretido, que se arrastava lentamente, como um perigo ardente e deveras próximo.

     “Alteza, o que fazeis aqui?” Um servidor, desvencilhando-se de obstáculos, dirigiu-se a ela conforme o contexto.

     “Não há tempo... temo que vosso pai...” Outro homem veio, olhando onde pisava.

     “O quê? Foi bom ter vindo aqui...” Tamara concluiu, e assim entrou de vez à disputa.

     — E, minha valente senhora, a futura rainha, seguiu. Cruzou o grande cenário de forma rápida e destra, defendendo-se a correr lateralmente pelas rochas, sabendo as horas certas de pisar no solo olhando a consistência do magma. Os monarcas estavam a poucos metros, rodeados por uns três ou quatro homens incapazes. E digo debilmente incapazes porque, parece que o treinamento, apesar de bastante eficiente, não fora eficaz para prepará-los para isto: um escamoso e negro wyrm, que os encurralava e parecia petrificá-los de medo.

     Já se avizinhava novamente o final da tarde, mas o cavaleiro se conservava em olhos e sentidos bem abertos, pois aprazia-lhe a adrenalina da memória evocada em tom épico. Narrou em sequência que a princesa, tão logo pressentiu que ali estivessem, bateu com a sua furtiva espada de lâminas duplas ao seu escudo que levava às costas. O retumbar dos metais fez a criatura voltar sua cabeça para a nova desafiante, e com isso os nobres que protegiam o rei e a rainha escaparam. Uma furiosa bola de fogo irrompeu em sua direção, mas a garota não estava mais lá, e com maestria já galgava as escamas do grande animal, talvez pensando em outro plano arriscado. Focou bem na voz aos espantos dos pais, pois eles não sabiam se olhavam para os guardas, clamando para que fossem ao encontro deles, ou se temiam pela filha, que estava em algum lugar ao dorso do bicho, como se ele fosse um indefeso e dócil pônei ou cavalo.

     Ponderou que, realmente, a princesa vacilara, mas em invejável atitude pulou, com um salto certeiro e digno, ao lado da mãe, que não sabia se ria satisfatoriamente entre a boca ou se ali mesmo recriminava a filha com uma testa franzida. Desvencilhando-se de uma rajada flamejante que varreu o ar, ela os defendia com seu comprido escudo em formato de elipse e incrustado por duas pedras escuras nas extremidades.

     Aprazia-lhe admirar tais cenas, mesmo que imageticamente. Estava acompanhando, mas Rosselle abruptamente cortou dizendo que, recalculando o risco, tiveram de se retirar. A dama de companhia também pediu desculpas, pois tinha outros assuntos a tratar, e de mesma forma deixou o prisioneiro a sós.

     Minutos após ausentar-se, ele confirmou que avançavam as horas, pois um servidor já trazia nova comida para o cavaleiro. E, não foi qualquer um: as vestes escuras delatavam ser, novamente, a figura do petulante homenzinho. Não era mais necessário, porém, sua interessante habilidade em passar despercebido, porque seus esforços em relação ao caso já surtiam efeitos, possibilitando-o tomar uma postura mais vigilante.

     Atipicamente a conversa foi até rápida e agradável, enquanto ele devorava uma coxa de frango que “o amigo” furtivamente tinha pego cozinha do castelo. Mantinha a atenção ao presente, contudo seus pensamentos fugiam para horas atrás, quando compreendia os reais reveses em questão. Após a companhia sair, e tendo finalizado a refeição, requereu novo ânimo e executou a mesma série de exercícios de antes. Pois, ainda, não havia muito o que fazer.

 

v   

 

     — Senhor, após seu matinal desjejum, queira me acompanhar. — Um outro homem, dessa vez um guarda todo paramentado e não a visita de dois dias atrás, falou conservando um sorriso de malícia. Trazia, o que parecia ser, a última ração do prisioneiro e a passou pela grade. Enquanto o servidor, com ar de superioridade e satisfação, observava-o comer como um cachorrinho, ele assumiu para si mesmo que o recurso de maior sustento provido à cela fora, deveras, a tal coxa de frango, que o simples homem tinha trazido. Como nas outras vezes, devorou o conteúdo do prato. Subindo com o nobre, desarmou-se um pouco de sua postura rígida e permitiu chamar o petulante homenzinho de amigo.

     — Olá cavaleiro! — O rei optara por recebê-lo no anfiteatro, ironicamente uma das últimas visões de liberdade do forasteiro. Uma vez estado ali, ainda lembrava de todos os detalhes: dos estandartes erguidos e dos tecidos em elegante azul-escuro que desenhavam suas quatro sacadas, das paredes e arquitetura em harmônicos tons de cinza prateado e amarelo reluzente, das cadeiras de madeira e dos bancos enfileirados como em escadas que se direcionavam para o centro, e finalmente do som das águas correntes que acresciam mais vitalidade ao cenário. Era bom respirar ar puro, mas meio sufocante ao ver que mais nobres estavam ali. — Pressuponho que o Senhor se recorde dos fatos que se sucederam aqui nesta sala. Sua atmosfera conserva os mesmos padrões, e as mesmas lembranças, de outrora, com o requinte de uma leve modificação: a cena representa agora um tribunal, onde meu particular conselho e eu deliberaremos sobre vosso destino. — O monarca abria os braços a demonstrar magnificência. Ambos se olhavam bem nos olhos.

     — Estou certo de que sois um homem justo, Majestade. Sendo esta a melhor, e mais viável solução, prosseguiremos...

     Risinhos abafados e blasfêmias tipo “quanta empáfia” se faziam ouvir pelo cenário. O presidente do tribunal ordenou silêncio, e continuou ecoando sua forte voz:

      — Senhores... Há aproximadamente 15 luas atrás, aos primeiros toques do implacável inverno, um viajante misterioso para, por longo caminhar, a estas terras longínquas em busca de auxílio e descanso. — Não foi somente o então condenado quem recordara uma antiga fala sua, mas também o soberano guardava similar estratégia. De acordo com o seu feitio e características reais, o julgamento iria demorar... — Apesar de ter se negado, por alguma ou outra razão, a dizer o próprio nome, abrimos os portões de nossa cidade para dito nobre, pois sua petulância e cinismo ratificavam que era um cavaleiro. No entanto... — e gradativamente enquanto proferia a conjunção, voltou-se à efígie do homem abaixo de todos. Os ânimos estavam acirrados e as ofensas cortavam mais do que espadas. Como a cena continuaria? — Com eloquência afiada, sorrateiramente entrara em nossa casa e tão logo conquistara o direito de uma audiência, sem precisar de mais do que suas palavras e de seu olhar imperturbável. ...Cheguei a buscar informações sobre Sua pessoa, mas não encontrei um alento sequer. Receio, porém, que devesse ter empregado mais esforços, embora não sejais digno de tantas preocupações, pois atravessando os limites já não seria seguro, nem mesmo prudente.

     O condenado sabia o que significavam as pausas à fala do rei, e a alegria o assomou ao reconhecer que seu sigilo continuava mantido. Caso estivesse ainda lá embaixo, estaria novamente treinando, ou criando mapas ou estratégias de batalha com os dedos à terra. Mas, que bom, já tinha retornado ao ilibado convívio das pessoas livres, e as preocupações ligeiramente mudaram.

     — Por que Vossa Majestade não nos esclarece o contexto em que me prendestes? — Agiu de forma realmente impulsiva, mas depois que viu, já não dava para voltar atrás. O destinatário da ofensa franziu o cenho, enquanto preparava outro discurso. Tirou os olhos dele e voltava à plateia.

     — Senhores, parte de mim deseja esquecer, mas não somos, e nem seremos, capazes de apagar o inevitável. Pensava que, como rei, fosse necessário afastar-me da princesa e permitir-lhe o tempo para refletir sobre suas ações e consequências. Ponderava que, como monarca, talvez fosse melhor não intervir e deixar o destino desenvolvê-la como a futura rainha que um dia se tornaria. Concluía que, como pai, pudesse ser mais auspicioso esse afastamento... pois, jamais seremos capazes de apagar o inevitável.

     E assim o julgamento se procedera: caminhando entre meandros da racionalidade dos fatos e dos abismos e atrações da emotividade, com uma atípica ausência de testemunhas.

     — Saiam todos! — Mais uma vez, o soberano varreu a sala com a sua imponente voz. Tão logo ouviram, os guardas e nobres que ali estavam começaram a sair, alguns ainda com sorrisos, outros em indecifrável silêncio. O cavaleiro engoliu um seco e... pegaria no cabo de sua lança, caso estivesse com ela. Andava de costas ao passo que o presidente da cena se aproximava.

     Os raios de Sol que penetravam pelas compridas janelas de vidro do aposento eram entrecortados pelo ritmo lento e maquiavélico do rei. O chão reluzia os brilhantes da sala, e, apesar de trabalhosamente encerado e limpo, o antigo prisioneiro recordava a poeira e o descaso de suas anteriores instalações. Tudo ali era bonito, mas podia, de uma hora para outra, acabar.

     — ...Golpe do acaso! — Com o aço de sua espada, tocou o ombro direito do viajante, como quem concede títulos a outrem. O gesto parecia uma ironia diante das circunstâncias que lavaram Tamara a falecer. Não fazia sentido: o antigo condenado tinha certeza de que o pai acreditava que ele, aproveitando o momento a sós com sua filha, a tivesse matado. Ao que os atuais acasos indicavam, o progenitor poderia desconhecer, porque não, sobre as adversidades enfrentadas por ela em sua segunda subida às montanhas. E... escolhera-se aquele palco pois assim preservar-se-ia o sigilo da situação, evitando falatórios à toa ou mexericos ácidos da plebe.

     O fluir das águas percorreu os quatro cantos da sala mais uma vez, e finalmente alguém ousou adentrar o aposento. Não se ordenou, contudo, a entrada de terceiros, e pairava um clima de tensão no ar, com o metal frio da arma ainda sobre o ombro do cavaleiro.

     — O destino a moldaria, com certeza, em uma exímia e atenciosa rainha. — Ele tirou a lâmina do tronco superior do rapaz. Olhando para trás como se não soubesse quem se aproximava, não disse nada mais, porém pegou uma carta das mãos da nobre que entrou. Voltou seus sentidos para o homem, e assim falou: — Eis que porto uma carta de minha corajosa e amada filha, esclarecimentos que se convertem em provas para... a inocência do amigo. Contudo, alertai-vos: esta é uma conversa sigilosa, não saiais por aí espalhando aos quatro ventos. Façais somente o que eu mandar.

     A servidora que trouxera a tal atestação era Rosselle, e o também ignorante ficou feliz em revê-la. O rei abriu o material com cuidado, e a mente do viajante pôde observar mais vividamente o antigo relato da criada. Além de copiosa responsabilidade da princesa em promover a justiça, eram invejáveis seus níveis de instrução e seu gosto, igual ou melhor do que o monarca, por construção e detalhes de cena. A carta era longa, e permaneceram ali até os sons da noite.

     — Necessitais, claramente, de descanso e melhores refeições. Disponibilizaremos ao Senhor tranquilidade para os devidos estratagemas e treinamentos necessários. Ao longo de vossa jornada até aqui, notei que ficou mais próximo de um de meus homens. Ele irá acompanhá-lo no que precisar. Com bondade...

     E então, a figura do petulante homenzinho apareceu, dessa vez com reluzentes roupas reais e ostentando um estilo de cabelo que não se via em meio às ruas.

     — Olá amigo! É bom revê-lo aqui no convívio da corte. — Fez a devida reverência ao superior, dizendo “agradeço, Vossa Majestade” em alto e bom som, e já acompanhava o forasteiro à saída, contando feliz de suas relações e novas amizades ao castelo.

    

v   

 

     Mais oito dias se passaram, e o novo escudeiro do nobre forasteiro já tinha levantado, antes mesmo de os galos anunciarem o amanhecer e das ruas em sequência se encherem de pessoas para movimentar o comércio local.

     — Quem vem lá!? ...Oh, é a senhora, Alcaide Déhla. — Ele ficou meio desapontado, mas fez ainda assim as honras da casa como podia. Estava apressado com alguma coisa. — Hoje é o grande dia: meu amigo e eu iremos finalmente desbravar a colossal e há muito esquecida paisagem de montanhas que observamos ao longe, ao redor deste povoado. Eu, se a Senhora me permite dizer, estou tão tomado de ânimo que já não me sustento. Vamos lá para as cordilheiras vamos lá, a serpentear as galerias vamos lá...

     Ele corria atônito de um lado para o outro, a arrumar a melhor mesa da casa para sua superior. Enquanto arrumava, começava a cantar uma melodia alegre feita por ele. Serviu biscoitos de mel e suco de fruta da estação para a servidora.

     — Guardais vossa animação para a vitória, que será certamente virá. — Ela portava um bolo de cartas no bolso, que tomou cuidado para o anfitrião não ver. Optou pelo uso do tratamento “vós” como algo pensado também, buscando uma conversa amigavelmente respeitosa com o homem.

     Deveriam ter mais algum tempinho, pois o cavaleiro viajante falou que passaria ao anfiteatro a fim de “meditar e louvar a bela coragem e o real valor da princesa. Levando, agora, a memória como um de seus talismãs”. O servidor repetia todas as vezes possíveis aqueles exatos dizeres do amigo, pois achou bonito e respeitosamente intrigante o verso. Pegando seu eterno fervor, naquele dia bem mais elevado, não foi difícil a servidora se beneficiar daquilo, pondo então o baralho à mesa. Amigavelmente o convidou para uma única partida, e fizera questão de enfatizar “única”, pois não visavam demorar.

     E assim, lá se foram uma, duas, três, quatro rodadas... Déhla venceu a primeira partida; ele ávido por derrotar uma sua superior, permitiu-se jogar outra. Tendenciosamente, tinha levado para seu lar um passatempo rápido, mas o preferido do subordinado...      

     — Pois bem, aqui estou. Finalmente, no limiar destas montanhas.

     O cavaleiro via à frente uma escada de madeira, com uma plataforma feita do mesmo material, que corria para a direita do observador. Ainda que o Sol já iluminasse a área, os seus raios eram abafados pela imponência da elevação. Assim, algumas mariposas ainda voavam, como sombras tardias da noite, atraídas por um fraco fogo que crepitava em uma misteriosa fogueira. O lugar onde ele estava era alagado, e se colocava sobre um também passadiço de lenho, interligado ao esconderijo por curtos degraus. À sua esquerda, uma parede exibia curiosos rabiscos compridos e circulares, e seu semblante de explorador se tornava circunspecto e decidido. O que poderia encontrar ali?

     Para a jornada, armou-se de tudo o que achava que fosse necessitar: carregava tantas curas rápidas para adversidades quaisquer e certeiras faquinhas de arremesso quanto seus bolsos podiam equilibradamente suportar, respeitou valiosos momentos de descanso em uma cama quentinha e relaxou em necessários banhos, e determinou para si mesmo um treinamento intensivo de oito dias; por um capricho de escolha pessoal. Optou por trocar sua lança comum de viagem por uma alabarda, que apesar de exigir mais destreza e força, era mais versátil e daria conta de armadilhas e adversidades de portes variados. Conservou seu triangular escudo, dourado a combinar e a equilibrar com a arma alongada, e partiu confiante e atento.

     Subiu tranquilamente o primeiro obstáculo e correu célere até o segundo. Alcançando-o, viu seu primeiro obstáculo vivo: um filhote de polvo típico daquela região, pequeno, e com seus tentáculos úmidos emaranhados, como uma massa única e compacta. Não fora difícil derrotá-lo, e logo galgou mais um lance, dessa vez fazendo um semicírculo e indo para sua esquerda. Heras pendentes o acompanhavam, anunciando a entrada da gruta!

     Passando por um curto corredor sustentado por colunas de madeira, avistou um interior aberto e com uma atrativa coloração verde provinda de cristais. Viu um curioso escadote, que estava colocado de lado, ao redor de um começar de arquitetura maciça de pedra. Executando cuidadosamente novo movimento para a mesma direção, deparou-se com uma solitária figura portando um saco às costas cheio de pedras, assemelhando-se a um trabalhador que mecanicamente fazia a ação de extrair minério de uma das paredes do local. O tal servidor poderia ser boa pessoa, ali a executar de forma simplória seu ofício, ou talvez estivesse lá disfarçado de uma, o que o transformaria em inimigo. Uma vez que tais áreas já estavam há muito desabitadas, não demorou para chegar à conclusão óbvia, e o intruso desferiu-lhe um golpe certeiro; pois, subindo até o próximo patamar, a ameaça poderia segui-lo.

     Esquerda e pequeno túnel novamente, o característico e belo brilho verde perpetuava-se à área, porém, em quantidade menor comparada ao caminho anterior. Avançando com cautela, achou melhor ir tangenciando as paredes, pois o lugar escondido era perfeito para uma emboscada. Pelas graças e sortes da batalha, escolhera o lado mais apropriado, e viu uma criaturinha diminuta à espreita, com sua lâmina em constante aviso para que ninguém se aproximasse. Focalizou bem, e aproveitando a oportunidade, o cavaleiro atacou.

     Finalizado, andou com cuidado, pois os pontos de luz agora poderiam não ser tão somente “atrações inofensivas”. Teve o cuidado de não usar sua lanterna, que carregava consigo sempre que ia explorar ambientes escuros, e confiou em seus sentidos de caçador, porém de olhos abertos.

     “Pof!” Embora se movesse com extrema presteza, pisou onde não deveria. Seus pés, saltando para trás por reflexo, delatavam três bolhinhas que, ao estourar ao mínimo toque, liberaram um veneno quase mortal. Sem tempo de espera, da escuridão à frente pularam outros dois sons diminutos a cortar o ar. Eram mais duas da mesma ameaça.

     — Achais mesmo que sois páreos para mim? Patético... — O furtivo e iminente perigo não abalou o homem, e, guardando seu escudo, sua mão se incendiava como daquela vez à sala do trono. Uma ilusão de cabeça draconiana foi projetada logo acima de seu pescoço, e um lança chamas bastou para fazer as ameaças caírem. O fogo também iluminou por alguns segundos a galeria, revelando novas armadilhas com toxinas, além de variadas pedras para fortalecimento de armas ao redor do cenário. Caso o próprio rei e o destino bondosamente o concedessem, ele retornaria lá com certeza. Por agora estava em missão, e não desejava ser bajulado pela ganância.

     Um outro ser diminuto sorrateiramente foi ao encontro dele, pelas costas. Mas, como se o desafiante fosse um animal, acertou o alvo sem que fosse preciso ver. Curou-se com calma e virou, seguindo pela direita. Enxergou uma espécie de elevador acionado por um botão no chão. De mãos e foco sempre alertas, subiu.

     Logo à frente crescia um novo túnel curto e, tão logo o passou, observou dois inimigos também minerando o local, um de cada lado. Outra feia criatura humanoide patrulhava o trabalho deles. Silenciosamente, esperou que o minerador ambulante se afastasse e atraiu o mais próximo, da direita. Era até sem graça o quão preparado estava para aquilo, além de o alto nível de fortalecimento de sua alabarda.

     Avançando um pouco mais, localizou a saída! Mas a luz também refletia à esquerda o que muito provavelmente seria uma nova emboscada: uma espécie de quarto sem portas, onde fortificadas madeiras formavam a parede frontal, com fundo e laterais beneficiadas pela arquitetura natural da caverna. Ao lado dele, à frente da referida construção, erguia-se um altar, de mesma forma em coloração esperançosa, porém com certeza já tomado de inimigos.

     O que fazer? Podia tentar a sorte e errar para um dos lados. Mas, mesmo que, claro, desse conta de quem viesse, a chance de contrair veneno agora quase na linha de objetivo era alta, e não sabia quantas ameaças teria de dar conta naquele estado.

     Parou, pensou estrategicamente... e enxergou uma solução! Um minerador, o mesmo inimigo do saco com pedras, mecanicamente simulava seu trabalho mais adiante. Ele, ao passar pelos outros adversários similares, cuidou de observar que os materiais carregados seriam condutores de calor. Fazendo uma rápida estimativa de quantas rochas existiriam no saco, acionou sua ilusão draconiana e tratou de escapar dali em seguida, correndo para trás e com o escudo às costas, o protegendo. O impacto causou uma grande explosão, mas não tão colossal com ele mesmo tinha temido. Com grande parte dos adversários caídos, subiu de novo, pois sua rapidez com adrenalina o fez reativar o ascensor, e atacou como um leão os outros. Seus pés chegaram a vacilar como anteriormente, mas, devido à recém estratégia, o fogo já desabilitara as possíveis armadilhas. Diversas qualidades de pedras também se amontoavam à elevação, mas seguiu reto para o ar puro. Olhar iminente.

     Foi brindado por uma privilegiada vista da paisagem. O panorâmico horizonte à frente era lindo e, até mesmo para mentes mais sérias e objetivas como a dele, bastante atrativo ao ponto de se desejar tocar, e mergulhar em queda livre à copiosa natureza. Bem abaixo e incrustada em outra montanha já bem ao norte, fazia-se uma obra monumental, que seria magnânima e imponente, não fosse desativada em tempos de outrora.

     Em virtude do sinuoso acesso, o acampamento que montaram ali conservava ainda os seus vestígios. Logicamente, as chuvas e as intempéries danificaram-no em grande parte, porém o viajante, por suas habilidades de sobrevivência, conseguiu melhorar um pouco a situação, ajudado pela força de ânimo que o invadira ao vislumbrar tão grata beleza. Os recursos que, à solidão de lá em cima, tinham conseguido resistir eram algumas madeiras, as quais o explorador identificou como uma fusão de braúna com carvalho, além de uma singela fogueira que trazia uma luz de coragem e mistério aos futuros passos da jornada.

     Andando livremente, enxergou três retangulares e pequenas lamparinas posicionadas gradualmente nas bordas da paisagem, feitas talvez do metal fundido de antigamente; e à extrema direita mais um elevador rudimentar, que conectava o cenário.

     Permitindo-se instantes de descanso ao redor do fogo, pensou em toda a sua odisseia até então; trazendo à memória o suntuoso castelo, bem como o que representava a figura do rei, da princesa, de parte de sua corte, até mesmo visões do povoado e do petulante e irritante homenzinho. No entanto, era um alento a certeza de saber que todos continuavam bem, e a glória por poder-se ver útil o motivava a cada brandir de arma.

     Subiu e se viu imerso à mesma geografia, com detalhes de algumas arvorezinhas e plantas, que substituiriam por assim dizer os cristais e as sufocantes paredes do interno da gruta. Uma curta plataforma de madeira contornava um semicírculo à direita, com uma criatura diminuta, que também observava o horizonte.

     Foi a vez de usar uma de suas faquinhas. Mirando na escápula, atraiu o inimigo para si, pois as tábuas poderiam não ser tão fortes àquela altura. Ele veio, irritado e com seu salto característico, mas foi debilmente alcançado pela alabarda. Logo mais, algo novo apareceu: um morcego peludo e com as asas abertas. Criando um ataque de vento com suas grandes orelhas e equilíbrio de voo, visou confundir a presa. Não obstante, defendeu-se com o escudo e, pulando controladamente, verteu dois rápidos golpes ao ar. O animal caiu, e ele passou em seguida, tomando extremo cuidado e tocando levemente o piso com a ponta de sua arma.

     Uma escada em ângulo agudo se via agora, permitindo acesso a um refúgio escuro em formato hexagonal. Por fortuna, o abrigo era pequeno e apenas com uma saída à esquerda, continuando o exterior. Lá descansavam três morcegos, mais um dormia recolhido à porta de objetivo, e o desafiante avistou de relance mais outro, no extremo superior da “casa”. Sem fazer muito alarde, fez sua mão brilhar novamente e desabilitou os desavisados seres no chão, além de suas fagulhas alcançarem o vigia da passagem. Rapidamente, o animal que estava mais ao alto já incorria em suas garras; mas escudo, alabarda, e facas de novo, não foi difícil desabilitar. O outro ainda se debatia à saída, e apenas um golpe certeiro deu conta do recado. Louvando por estar pisando mais em terra firme, e prosseguiu viagem.

     Passou por um local ermo e estreito, porém, sem armadilhas nem ameaças. À esquerda existia uma escada que corria para baixo, e à frente outra que ia para cima. Poderia descer e desbravar o que havia lá embaixo, por sua conta e risco. Mas ponderou, abstendo-se de uma leve pontada de curiosidade, e não fez barulho até começar a seguinte subida. Mesmo se ali existissem monstros, deveriam ser só novos morcegos ou outros mineradores, pois o acesso era exíguo e escondido.

     Conforme galgava as atuais tábuas, um curioso cântico fúnebre era entoado em volume baixo. Lembrou-se das histórias da dama de companhia Rosselle, e... sentiu-se tranquilo, pois tinha se precavido com um grande estoque de itens de cura. Em paciente estratégia, ele esperou um instante em que a música se tornou mais densa, e fez soar um sino de prata que carregava sempre à sua cintura. O tintilar do objeto, semelhante àqueles usados para chamar o gado, evocou dois goblins de pedra em tonalidade cerúlea. Eles se locomoviam livremente pelo cenário, ostentando presas afiadas e armas estilizadas: lâminas gêmeas que lembravam ágeis foices duplas. Tinham passado a plataforma e caminhavam por uma superfície plana, com algumas graminhas espalhadas e borda fortificada em quadrados de pedra, contendo estilos que pareciam se combinar aos desenhos do início da empreitada.

     As evocações lhe dariam cobertura caso a situação assim necessitasse, e, mesmo que “morressem”, retornariam para a sagrada campana e jamais o deixariam de fato. Contando os passos, prosseguiu. Contudo, devido à amplitude da área e à iminência de enfrentar um adversário desconhecido, não sabia se o melhor seria ir para frente, olhando para cima, ou se continuava se esgueirando pelas beiradas, atento aos lados.

     Vestígios de atividades humanas e três colunas à direita transmitiam sensação de certa quietude, mas, graças à escuridão do vão interno, ele já notava o perigo. Ao começo, dois morcegos tateavam o solo, e ele ordenou através de sinais para que seus goblins mirassem um em cada animal e usassem seus projéteis mágicos, como os havia treinado. Com um leve sorriso de malícia previu que o seu plano enfureceu mais duas ameaças aladas, que vieram dos recôncavos mais inóspitos do refúgio a se juntaram aos amigos. Ataques de garra, mordida, chute, golpes de alabarda e escudo... os quatro enfim caíram e o suporte das evocações foi muito bem-vindo, apenas envenenando o cavaleiro e um de seus ajudantes uma única vez, mas com tempo necessário para se curarem quase totalmente.

     Não deu tempo de recuperar em vida totalmente, pois o então presságio maior já havia os identificado. Uma criatura também alada, apenas com cabeça de mulher e o resto todo deformado, já reforçava sua triste melodia. Destramente, o cavaleiro pegou dois tampões de ouvido, bloqueando o som que poderia fazê-lo dormir. Não preocupou com os goblins, que já ajudavam a cercar a nova ameaça, pois entidades feitas de pedra ofereceriam boa imunidade a sons, sobretudo os de baixa frequência.

     Mas a criatura híbrida, que era a temida harpia que muito provavelmente abreviara a peregrinação terrestre da princesa Tamara, era ardilosa em ações e ágil em seus atos. Fez uso de uma magia tipo malefício, em que conjurou três caveiras em um esfumaçado estilo preto e branco no ar. As caveiras perseguiam sincronicamente os ajudantes pequenos, e três novos morcegos trabalhavam por encurralar o cavaleiro e confundi-lo com ataques.

     Deitou-se no chão para diminuir o possível contato dos agressores contra a sua pele, enquanto os expulsava com o escudo e rápidos chutes. Porém, as garras de dois daqueles seres eram igualmente rápidas, e cortavam sua carne como aves de rapina.

     Uma das caveiras conjuradas mudou de repente de direção e incorria ao herói a fim de abatê-lo. Via o perigo, mas considerou mais válido o feitiço ter mudado de foco. Pegando impulso com os braços, em um movimento de abdominal levantou-se depressa, e rolou para o lado com a destreza de campeão. Encaixou, também invejavelmente, cinco de suas faquinhas nas almofadas circulares entre suas falanges, como se tais áreas macias fossem feitas para segurar o aço. Arremessou-as ao léu como se fossem pássaros, e dois de seus bicos foram de encontro à caveira, desmaterializando-a como mágica.

     Aproveitando, no entanto, os outros três projéteis que dançavam pelo ar, a harpia e os remanescentes adversários bateram suas asas em uníssono, gerando um pequeno tornado. A deturpação não apenas ampliou o caos, mas ainda deu mais aleatoriedade aos errares das facas.

     Se até o presente momento confiava mais em sua sagacidade e força bruta, aprendera agora a valorizar as ajudas e, principalmente, seu escudo. Foi graças a ele que conseguiu melhor se estabilizar, cortando os ventos como quem aprende uma estratégia nova.

     Os mini-feitiços dos goblins também auxiliaram na dança, enquanto coloriam de azul o interior do vórtice. O brilho era grande, e ainda foi incrementado pelas partes metálicas da antiga estratégia, que, evoluindo-se de pássaros para singelos anjos, pareciam juntar-se à exuberante natureza.

     O espetáculo era lindo, e ocasionou certas lembranças ao herói. Porém, um segundo depois retornou seus pensamentos à batalha, pois aquele artístico corpo de baile encantado já se mostrava mais malicioso do que a tática de confusão dos morcegos. Ambos os lados protegeram seus olhos por instinto e como poderiam, e desferidas de golpes, de arranhões e de chutes vieram de todos os lados. No entanto, somente dos animais e das criaturas de pedra, pois o humano se conservava incólume à disputa, desvencilhando-se dos ataques segundo o barulho dos sons, audíveis agora graças aos tampões que voaram para longe à “estratégia” do tornado.

     Mas, apesar de escutar bem as ameaças, também sofria danos, e, controladamente, por curtos instantes permitiu-se abrir os olhos. Primeira, segunda, terceira... na quarta vez viu o animal híbrido se aproximar pela frente, e uma de suas facas surgir pela lateral. Com um fortuito e preciso aparar de escudo, fez o projétil acertar uma das asas do bicho, que perdeu a postura e foi jogado pela força contra uma parede rochosa.

     A harpia voltava a entoar seu canto triste, enquanto se debatia contra a pedra. Porém, àquelas condições, a melodia não tinha mais a força de Hipnos, mas sim seu aspecto mais fúnebre e sombrio de um repousar eterno. O feito, não poderia ser desfeito; e rezou mesmo estando diante de um inimigo atroz. Curando-se, agora totalmente, virou e tirou mais três facas de seu bolso, as quais acertaram precisamente o grupo dos três seres noturnos.

     Com o passar do tempo, a tormenta foi se amainando, e os agressores também foram caindo, pelos esforços do explorador. Agora, ele poderia seguir em frente, para mais uma escada e plataforma à esquerda.

     O lugar também revelava algumas pedras, e, em constante vigilância, prestava atenção às rotas dos raios de Sol, certificando-se de que ninguém vinha das partes menos visíveis. Chamou pelos seus companheiros evocados, mas apenas um prontamente respondeu... Antes de seu último bater de asas, a antiga criatura ainda mantinha o controle sobre suas caveiras, e, encontrando-se com um dos goblins, desmaterializaram-se ambos.

     — Resististe bem, companheiro. Obrigado.

     Enxugou o suor da face e, com dificuldade, buscava fôlego naquele ar rarefeito. Ele ia à frente, tendo o escudo e a evocação pétrea como seguranças. Sempre tateando com sua arma antes de pisar, deparou-se com um molusco, da mesma espécie pegajosa de quando iniciava a então aventura. Achou aquilo curioso; não existiam grandes fontes de água ali. Abaixando-se, uma investida bastou para tirá-lo do caminho, enquanto o aliado pulou às costas do evocador e cortou com suas lâminas as asas de mais um morcego que já os observava. À exceção do incidente, o mirante era tranquilo e belo, com um reluzente cristal branco encrustado no canto mais próximo à outra escada transmitindo uma falsa sensação de paz e contemplação.

     Não obstante, alcançaram silenciosamente o novo objetivo. Com o cuidado para não serem mais vistos, os olhos do cavaleiro miraram um acampamento, este com duas tendas, e talvez mais resistente do que os outros. Como previsto, já estava tomado de invasores.

     Três inofensivos polvos, dois inusitados morcegos, e mais duas vigilantes harpias os aguardavam para brincar àquelas alturas. Operando em similar estratégia, o segurança de pedra lançou projéteis ao ar, tipo estrelinhas direcionadas, que ajudaram a fincar as asas dos seres peludos ao chão para que, com um novo salto, encontrassem a furtiva foice. Os curiosos embrulhos, que se locomoviam deveras lentamente pelo chão, seriam fáceis de se derrotar e o forasteiro não se preocupou com eles. Realocando seus tampões, mirou nas criaturas híbridas, que guardavam mais um elevador à esquerda. Com sua última faca, impossibilitou a ameaça da beirada de se mover, arremessando o objeto contra o chão em um treinado e perfeito pulo.

     As duas, juntando suas forças, clamaram cada uma pelas três esfumaçadas caveiras, que logo se juntaram a um rápido pó verde que a agressora do canto espalhou enquanto plainava em voo. Revides de escudo e rolares pelas laterais foram suficientes para que o conjunto gradativamente fosse dissipado, mas infelizmente a vítima experimentou uma das piores sensações de todas as suas andanças: toxina de harpia, mais letal e abrasivo do que qualquer outro status negativo do tipo.

     Algo parecido com uma achatada gota dourada brilhou ao pescoço do herói, e duas curas para veneno foram rapidamente misturadas para criar o antídoto à substância. Ainda sob tal efeito benéfico, sua mão se incendiou com todas as suas forças, e as incandescentes chamas do dragão chocaram-se contra as duas adversárias, desabilitando-as por completo.

     Olhando para o lado, foi sua vez de dar suporte a seu amigo cerúleo, que, apesar de eficaz resultado, não fora eficiente, pois, por um arranhão ao corpo pétreo o fizera cair com o tempo. No entanto, não se deu ao luxo de parar, e voltando às suas costas, golpeou os solitários polvos.

     Estava sozinho, e literalmente: pois o ascensor, que se fazia ver como saída daquele sufoco, tinha-se desfeito e queimado junto às pobres agressoras, minutos atrás. Lembrou-se do acaso à intercessão da gruta, e agora era ele quem sofria os efeitos de sua própria estratégia. Permaneceu um tempo ali meio triste e sem ânimo, recordando-se da música melancólica dos pássaros.

     Observou tudo ao seu redor: as gramas em combinação de tons verdes e amarelos, os arbustos ora com insipientes frutos ora sem, e o chão meio laranja de terra, dessa vez mais firme e agradável ao andar descalço.

     Repetindo a rápida cerimônia feita para a primeira harpia, foi forçado a pegar algumas das presas e garras dos inimigos pelo cenário. Com o auxílio de cordas, fez rudimentares utensílios com pontas afiadas. Olhou para cima, e estimou a altura da parede de pedra ao redor do antigo elevador, e com a destreza de um gato agarrou-se às saliências das rochas, em árduo ofício de escalada.

     O seu treinamento foi o seu guia, e antes de o astro rei encontrar seu ápice aos céus, o cavaleiro chegou ao topo. Como se a natureza o estivesse esperando, vislumbrou o fogo de uma nova e misteriosa fogueira ao lado, quase à borda. E, mais adiante, uma colossal entrada para uma outra caverna, dessa vez selada com uma espécie de fumaça amarela. Os barulhos que lá se ouviam, já sabia bem do que se tratavam... Teve o tempo necessário para descanso; e depois, enfim, partiu para reclamar novo título.

     Ameaçou tocar a parede, e a barreira magicamente se desfez por completo. Estava no covil do wyrm, o último grande obstáculo até então. Criteriosamente, enquanto esperava a criatura dracônica se aproximar, evocou dois esqueletos armados de flecha e lança, que, igualmente aos goblins não morreriam por completo ali, além de a estratégia de poderem reviver à mesma batalha caso o inimigo se esquecesse de seus ossos uma vez desabilitados pelo chão, permitindo o tempo para se agruparem novamente.

     A ameaça foi serpenteando para frente, espalhando os filetes de água que se destilavam por fendas ao cenário. O cavaleiro já rolava para a direita, e o adversário se aproximava, fazendo demolir pequenas arcos de pedra que se viam curiosamente ao redor de ambos. Um caminho de fogo foi formado entre eles, mas o herói habilmente se desvencilhou, por ainda estarem um pouco distantes. Aproximando-se mais, outras lavas já desciam a boca do animal, as quais o desafiante de mesma forma rolou, dessa vez indo para a direita.

     Aparentemente, não foi uma boa ideia evocar os esqueletos: poderiam ser de excelente ajuda se o dragão sem asas se fixasse somente naquele alvo apenas, mas o evocador, por algum descuido ou adrenalina momentânea, não se ligara que a dupla tinha fraqueza ao elemento fogo. Quisera fosse diferente, mas não dava para se lamentar por ora... Ambos, a gigante fera e o ignóbil humano, olhavam-se face a face.

     O pescoço da fera se encandecia novamente, e o combatente se agachou, já incorrendo com a arma à direita. A mão esquerda do animal, que parecia se combinar perfeitamente à uma arma serrilhada de escamas que levava consigo, também visou ferir o homem, mas seu escudo perspicazmente defendeu o golpe. Aproveitando uma oportunidade, mirou às partes lisas do bicho e a estratégia foi eficaz, fazendo o agressor destilar novas chamas, porém em enfurecida direção contrária. Tendo mais outra sorte, percebeu que a “cobra” levantara novamente a sua cabeça, e a arma do homem novamente fez um bom trabalho.

     Estava em vantagem, e ele e sua evocação corriam para o objetivo. No entanto, apenas um dos esqueletos, pois o outro já fora sucumbido, sem chance para ressurgir. O amigo até incutiu o animal com sua longa e curta arma, mas tomava dano no curso do caminho de magma. Padeceu por completo, após pesada investida ao chão que a fera executou, mas com tempo necessário para que o evocador também a causasse novo dano. Águas, fogo, e algumas plantas se espalharam; pedras rolaram e arquiteturas da gruta caíram, mas o cavaleiro mantinha sua resiliência, olhando friamente o cenário.

     Tentou agredir a criatura mais outra vez, porém foi expulso por uma bola de fogo. Resguardava-se em um arco de pedra, mas rapidamente teve de escapar dali, pois o dragão que rastejava já batia com sua arma em posição ofensiva. Tão logo o resultado, pulou pra trás, mas sem tempo hábil para se defender, sofreu um dano da espada escamosa. O wyrm expeliu fogo rodando a amedrontadora cabeça, mas seu oponente correu para o lado, passando embaixo da grande figura. Ganhara, com isso, boa distância; mas foi a vez de a fera rodar com sua arma, alcançando boa amplitude e quase ferindo o homem, não fosse o aço de seu escudo que o protegera.

     Verteu mais um golpe de alabarda, e o animal tentou acertá-lo com a espada mais outra vez; que novamente não foi tão eficaz por conta do escudo. Bola de fogo e outra rolada para o lado, o padrão das estratégias parecia uma dança, que em um rigor sombrio, ditava o ritmo e os azares da batalha.

     A criatura arremessou seu pesado corpo novamente contra o chão, e, juntamente com as fumaças e pequenos terremotos, o cavaleiro pulou. Circulando a área, desvencilhava-se do magma crepitante, e desferiu-lhe novo ataque. Contudo, daquela vez o bicho andou e sua cauda funcionou como arma.

     O desafiante usou sua primeira cura de vida da atual incursão, e assim ficou surpreso: tinha melhorado e postura e destreza, estando, ainda que cansado, apto a seu ponto para tal confronto.

     Escapou de outra bola de fogo, enquanto a cobra já levantava novamente mão ímpia contra sua pequena figura. Porém, ao fazer o movimento de retorno com a arma, o outro não se ateve e tomou dano. Defendendo-se, viu o bicho se levantar e adquirir uma forma bípede, ao mesmo tempo em que acrescia a caverna com suas baforadas infernais.

     Embaixo, agrediu com dois destros golpes a barriga do animal, que, apesar de níveis acima do habitual, estava por assim dizer a mostra e sem resistência. Sua pesada e curva arma, que agora estava flamejante, foi de encontro ao herói, o qual em louvada sincronia rolou para a diagonal direita. Uma grande pilastra no centro, que ajudava a sustentar toda a caverna, ofereceu uma pronta proteção a um lança chamas, e rolando dessa vez para a esquerda, o cavaleiro saltava as chamas como se fossem inofensivos projéteis.

     Com o gigante aproximando-se, ficou com medo de tomar dano pelo solo ainda em amarelo-fogo, mas o magma já tinha se esfriado, e agora o humano, mudando de direção, confundia a fera.

     Ela ameaçou com um sorriso que ostentava toda a sua arcada dentária, e em um golpe reto de espada, agrediu o desafiante. Este revidou em ataque igualmente feroz, mas não calculando bem a distância, errou a investida. Calores e incandescências varreram o cenário, contudo ele se protegia atrás da grande coluna.

     Gastou mais uma cura, e defendeu-se de uma tática giratória do agressor. Os ânimos se exaltando pela batalha, aplicou dois golpes em sequência, que, infelizmente, não deram tempo de o cavaleiro se defender. Tentou agredir a criatura, mas a visão lhe atrapalhava. Encurralando-se, curou-se mais uma vez...

     Escudo em punho, escapou, e causou mais dano à fera. Mas ela não pareceu se abalar e tirou novos pontos do herói, fazendo-o cair e rapidamente proteger-se com podia.

     Porém, não deu tempo... novamente... E a cena, que parecia já conter de início a vitória do explorador, parecia ter virado como as sortes dos ventos exteriores. O wyrm estava bastante preparado, mas o bravo viajante era sobremaneira capaz. Mais duas curas rápidas foram gastas, e ambos seguiam em suas verdades.

     O magma escorria novamente pelo chão, e o cavaleiro alçou sua longa alabarda aos céus, como se estivesse a fazer uma espécie de ritual. Antes disso, estrategicamente tomou um elixir, mistura que o concedia maior poder de ataque e resistência. Andou para frente, mas pela primeira vez não se ateve para o fogo, e seus pés reclamaram pelas brasas. Levando um tempo para se recuperar, o oportunista não lhe deu trégua, e o valente guerreiro achou que era a hora de tomar sua penúltima cura.

     Cuspe de fogo à direita, ele correu pra esquerda. O monstro rodou em seu próprio eixo, e o humano conseguiu subir mais danos à criatura. Não obstante, pelo impacto do golpe selvagem o cavaleiro também sofreu considerável dano. Restaurou-se como presságio, e se posicionou embaixo para desferi-lo mais em três ataques. Com um redobrado cuidado para, agora, não pisar no fogo, rolava. Mas, contudo, seus movimentos já eram frenéticos.

     Agachou-se para não levar um lança chamas bem à frente, e seguiu avistando o que poderia ser a vitória. No entanto, abaixara também a guarda, e, com mais um rodopiar do bicho, encontravam-se frente a frente, medindo forças. Rolando para um ponto cego do animal, investiu certeiramente à sua barriga.

     A criatura dracônica, grande ameaça do reino e vivo óbice aos sustentos do povoado, caiu. Mas, por conseguinte, em eterno valor, o outro lado também encontrou repouso; em épico combate que ficaria à memória daquelas terras, junto à saga de Tamara.

 

v   

 

     Os filetes de água continuavam à fluidez, a resistente vegetação rasteira persistia ao cenário como se tivesse vida e fosse capaz de andar igual pessoas normais, a paz na gruta reinava finalmente; e o silêncio era absoluto. Em contraste à agradável cena, o reptiliano corpo do Wyrm de Magma, espécime misteriosamente intrusa na região, descansava lá com os quatro apoios estendidos e estatelados sobre as pedras frias. Ao lado, o cavaleiro, lenda que seria entoada em alto e bom som por, talvez, uma canção inventada pela figura do antigo homenzinho petulante, também repousava solitariamente ali, apenas tendo a alabarda e o escudo como companhias.

     Adversidade sim... porém o trabalho já tinha sido liberado ao povo que tanto esperava, lá embaixo. Ao se ausentar para a missão, o herói precisava inevitavelmente passar perto de certas casas de aldeões, pois a trilha até seu objetivo não permitia tantas alternativas. Mesmo que presasse pelo sigilo, e desgostando de fama ou da atenção de diversos olhares para si, fez o tal percurso, cumprimentando aqueles que acordavam cedo e lhe acenavam. Agora, o caminho estava reaberto e sem monstros; mas como lá poderiam voltar, se não sabiam do fato e muito menos do que acontecera acima de suas cabeças? Quem iria buscar o eterno e bom combatente das montanhas?

     — ...Êpa. Ásirus! Vamos com calma. O que está acontecendo com você?

     Depois do jogo de cartas interminável, o subordinado da alcaide Déhla já rumava para, finalmente, ultrapassar seus limites de sua casa e ir desbravar a paisagem com o amigo. No entanto, tinha a superior ao seu encalço, que ainda empregava sabiamente o pronome de tratamento inadequado para continuar em uma formalidade não necessária. Em muito caminhar, contou-lhe uma desculpa e tiveram de se despedir. O falante homem ficou só, mas por curto tempo; pois o cavalo do forasteiro apareceu em uma linha curta do trajeto, “inviabilizando” a passagem.

     Encontrando graça àquilo, pois, segundo o seu entendimento, o ágil companheiro teria lá aparecido porque ele próprio demonstrara valor em seus pensamentos e atitudes, subiu à montaria sem demora. O cavalo estava pronto para mais uma aventura, com uma sela de couro atravessada, de bordas altas e reforçada com ferro e outros metais, para maior estabilidade. Colocou, nos espaços ao lado, suas armas escolhidas e outros materiais que requereriam à incursão, como um resto do suco fresco e mais três dos biscoitinhos.

     O passeio foi tranquilo e sem perigos. O percurso elevava-se gradualmente, mas não era íngreme àquele começo de viagem. Seguiriam em paz, não fosse o atual explorador a falar com o animal, às vezes, coisas como: “Passear de cavalo por aqui é muito bom”, ou “Já vieste a estas pastagens, companheiro”?

     No entanto, quando se encontravam bem no meio do caminho, o animal relinchou do nada e um círculo de cor cerúlea apareceu, quase desequilibrado o valente homem. Fios dourados cresciam ao redor, recolorindo em tons de cinza o ambiente que o tangenciava. O interior em brilhante paleta de azul continuava nos mesmos fundos e contornos naturais de antes.

     A fim de brincar mais com o desavisado viajante, Ásirus foi de galope à pintura. Com suas mãos bem firmes a rédea, o então cavaleiro fechou os olhos ao executarem a ação, e os reabriu somente quando já caminhavam mais tranquilos. Observou que tudo ao redor estava em consonância com as mágicas cores, e, enxergou o lugar, como se algum dia na vida já tivesse atravessado o reino, com as banais e normais paisagens características de um contexto como aquele.

     Tudo era lindo! As terras a seus pés, a grama que cortava e ainda era vasta ao horizonte, as árvores mais além e a cordilheira ao fundo... Tudo estava lá no seu mais perfeito lugar, embora de coloração azulada como se ostentassem uma viva armadura feita da água que caía da nascente lá de cima.

     Preso à antiga prisão, o real cavaleiro, de fato, jamais teria levado em consideração o tal plano. Mas, tendo em vista a petulância e até uma amizade forçada, cedeu. Ambos se encontravam, à atual cena, no batizado “Mundo Cerúleo”; local que se assemelhava ao plano dos humanos e pessoas comuns, porém isolado de outros seres, permitindo a solidão à entidade que lá teria acessado. Encontrou Ásirus pastando por lá certa vez, e a história tratou de aproximá-los, tornando-os companheiros em muitas aventuras e adversidades.

     — Amigo! Percalços percorremos para aqui estarmos. Mas é grande a alegria saudável que me invade ao contemplar a serenidade do lugar! — E, o petulante homenzinho, agora com mais traquejo e segurança ao cavalo emprestado, atravessava as paredes rochosas da grande caverna circular. O tal destinatário da mensagem estava sentado, em concentrada posição de flor de lótus, meditando sob um calmo filete de água.

     O homem abriu os olhos, e também se aprazia ao ver a figura do servidor, como uma atípica salvação para si próprio. Calmamente, levantou-se, dessa vez sorrindo feliz, e foi ao encontro do homenzinho, que debilmente já chorava de emoção.

     A achatada gota dourada brilhou intensamente ao pescoço do herói, quando este, horas antes, tinha realizado a façanha de expulsar o wyrm daquelas terras. O objeto que portava consigo era um talismã, carinhosa e cuidadosamente concebido pela rainha Ellene, a fim de manter o coração da jovem Tamara constantemente a pulsar, desde que não fosse dela apartado dito ornamento. A dádiva funcionaria como um remédio, proporcionando um gradual e engenhoso alívio para seus ferimentos.

     Secretamente, a filha do rei deixara cair o ídolo oval às calmas correntes do anfiteatro, na ocasião em que ficou novamente a contemplar a sala, logo após o cavaleiro ter dela se ausentado, dias atrás. Talvez fizera aquilo pois já não encontrava mais tantas cores alegres à vida, tendo em vista o contexto, ou ainda porque não desejasse o título da mãe, temendo a ideia de ficar trancafiada no castelo, protegida como uma donzela em perigo. Rosselle foi quem entregou ao desafiante dita estratégia, e ele soube bem usufruir de seus efeitos, e até mesmo incrementá-los, a partir de sua força interna e de seu treinamento sagaz.

     Poderiam, os três agora, escolher como voltar: pela via cerúlea, caminho secreto que interligava os interstícios conhecidos, ou segundo o costume dos meros mortais, valendo-se normalmente do esforço para retorno ao lar. A lembrar-se de sua impaciência em ver o castelo sem poder entrar, redimiu-se conservando o amigo à montaria, enquanto guiava ambos pelas paragens. E, em cada mirante o homenzinho tinha uma história para contar, em cada escuridão das grutas encontrava palavras claras e felizes. Assim, prosseguiam.

     Retornaram à tardinha ao povoado. Àquela hora, as duas torres frontais estavam mais fortificadas, e o viajante que caminhava a pé fez questão de passar ali, para cumprimentar aqueles servidores como era devido. Inflou seu ego ao visualizar de novo a cena, ao passo que já previa uma curta espera, pois agora lá chegava em posição de destaque, como um valente e bravo salvador. A nobreza, o clero e a plebe deveriam estar em suas orações finais, ou já adiantando afazeres rotineiros para o dia seguinte. Aguardaram, como da primeira vez, à escadaria marrom da morada real. O então cavaleiro alisou uma vez mais o cavalo e teve as honras de fazê-lo retornar ao seu mundo próprio. Entraram após a permissão. 

     — Ora, quem a mim se aproxima? Quão grande júbilo é revê-los, ó vós, que atravessais estas portas!

     E eles contaram, às suas maneiras, a aventura ao rei. Abreviaram os detalhes, pois o Sol já se punha, além de sentirem fadiga pela longa jornada. Dormiram cada qual em seus aposentos, e, em renovada manhã, já se iniciava à corte preparativos para uma festa. Ao se diminuírem novamente as luzes da natureza, candelabros e castiçais eram acesos, e a sala do trono enchia-se das mais finas roupas, a dançar sincronicamente. Por todo o reino, e por todas as ruas, havia plenitude de alegria e riqueza de alimentos.

     — Esta festa não é somente para vós, ó heróico e amigo cavaleiro...

     — Sim. É igualmente como tributo à vossa filha, Majestade. Em honra de seu legado.

     E assim, terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A primeira crônica.

  A primeira crônica.         — Mas que calor é esse! Será que existe vida após 3.020?      O mês era junho. As folhas caíam... mas a te...