(...) E então o herói estava viajando. Com
seu cavalo, Ásirus, chegou a um povoado, que ficava próximo a uma montanha. Viu
casas de madeira, e um vale vasto; posto em uma geografia azulada meio em tons
de neve, mas que se harmonizava aos serpenteantes toques de verde em tempos de
calor. Era uma visão linda e tranquila. Resolveu, logo, se aproximar.
— Olá viajante! Diga quem é e a que vieste em nosso vilarejo.
Ambos, emissário e destinatário da
mensagem, apenas viam o refúgio ao longe mas não enxergavam com nitidez suas
construções. Posto entre duas torres de vigia altíssimas, o cavaleiro localizou
o homem, que estava em uma das janelas retangulares da edificação da esquerda.
Concluiu que, a julgar pelos tamanhos e, também pelos tempos não tão amigáveis
que se faziam, existiriam mais guardas no topo, revezando-se e em vigilância
constante daquilo que sempre poderia ser uma ameaça.
— Sou... um viajante solitário. Abarco
vários títulos e alcunhas por onde passo, e tenho como verdade para mim que o
nosso particular nome talvez seja uma mera questão que nos limita. Como o
Senhor me chamaria?
O homem certamente não esperava tal
resposta. Depois de muito pensar e (de o cavaleiro muito esperar, pois já
previa essa reação), olhares se encontraram novamente, e o emissário, afinal,
deu-lhe o veredito:
— A afirmação pareceu-me um tanto quanto
ambígua. No entanto, não é normal dita eloquência e jargões lexicais a alguém
de sua classe. Espera aqui! Chamarei um de meus superiores.
E, o homem foi. O cavaleiro desceu de sua
montaria, e ficou olhando o homem sumir no curso do trajeto. Ele, novamente,
suspeitava que tivesse de esperar mais tempo; pois, assim como resguardava-se,
o outro também fazia o mesmo, uma vez que ambos eram desconhecidos.
Os vapores da manhã trouxeram a tarde, e
tão logo, o vigilante chegou com outro homem gordo de grande barba negra e
triangular. Também omitiu seu nome, apresentou-se apenas como um dos
administradores do povoado.
— ... Então, o Senhor para aqui em nossas
terras apenas em busca de refúgio, descanso e comida. ...Ou é isso o que quer
que acreditemos — ele falava por entre olhos fundos e preguiçosos. O cavaleiro,
de escudo e lança vigilantes, alterou levemente seu semblante, mas depois
aquiesceu-se. Era ele quem estava em posição inferior, ora. — Perdoe-nos a
demora. Contudo, estou certo de que o cavaleiro não se importará em esperar
mais um pouco, pois temos assuntos administrativos a tratar. Creio que não
precise, mas as torres cuidarão de sua segurança. Até mais ver, meu bom homem.
E, os dois se foram dessa vez e o viajante
teve de aguardar mais alguns minutos para entrar. No entanto, a primeira fora
mais enfadonha do que a segunda.
— Olá. Saudações, quem aqui chega sem
dizer-nos o nome... — Uma mulher alta de visão perfeita e cabelos negros
veio-lhe ao encontro. Era Déhla, a superior do administrador gordo. Tinha uma
voz mansa e cadenciosa, mas não menos inquisidora. — Dado por estes tempos e
por sua eloquência, pode entrar; porém, sob aviso. Acompanhe-nos, por favor.
Os quatro finalmente correram a passagem
e, gradativamente, as casas e construções já iam se mostrando, ao passo que os
problemas e a vida para além do refúgio ficavam como que alheios, do lado de
fora.
A vista aguçava-se pois a entrada carecia
de portas (claro, dado o largo e comprido corredor, circundado por montanhas e
fortemente vigiado interna e externamente). Déhla mostrou uma espécie de carta,
contendo talvez a permissão para o cavaleiro entrar, umas quatro ou cinco
vezes. Os dois primeiros de início ainda fizeram caras de desdém, o terceiro de
preocupação, e os dois últimos obedeceram rapidamente a ordem. Deveriam ser
homens mais próximos aos assuntos de gestão do povoado, visto que claramente
ali imperava uma gradativa hierarquia.
— Já nos adiantamos a informar nosso rei.
A audiência está marcada para à segunda hora da tarde. Um subordinado meu
acompanhará em sua visita — e, sem dizer mais nada, virou-se de costas e foi
embora. Ele ficou sozinho por um instante, uma vez que os outros dois (o homem
gordo e o vigia da torre) já tinham ido realizar seus afazeres. Como bem se
apresentara, aprazia-lhe a ideia de estar só; mas logo um petulante homenzinho
pequeno se aproximou sorrindo satisfatoriamente. Ele o contaria que estava lá
para ser seu cicerone; isso, e tantas outras coisas mais...
O viajante desejava algo mais objetivo e
certo, sem desvios como uma “caminhada amigável” pelo povoado. No entanto, viu
que não havia hipótese, e consentiu. Não era necessário, mas para criar certa
imponência e distanciamento, subiu ao cavalo e vagaram até dar o tempo
necessário. Por vezes, o outro parava absorto em seus pensamentos: talvez por
estar escolhendo as palavras certas, ou ainda porque admirava aquela atípica
figura do forasteiro em cima de cavalo.
Graças às duas recém passadas adversidades
de espera, aquela pareceu distintamente mais tranquila. Não obstante o servidor
perseguisse o cavaleiro como se fosse um inimigo feito em suas viagens, a
espera foi, sim, agradável tendo-se em vista aquela paisagem leve e montanhosa.
— Uh...! Já não era sem tempo. Faltam
vinte e cinco minutos para as duas. Alcaide Déhla permitiu teu ingresso ao
castelo, expressamente acompanhado por mim, apenas no interregno de vinte e
cinco minutos restantes para a reunião. Vamos entrar!? Ou, caso desejes,
poderemos ainda permanecer aqui para uma ou outra coisa rápida. Ou ainda,
ingressar-nos-emos agora e neste minuto, e eu lhe contarei sobre histórias
desse povo. Mesmo em tempos de folga e ócio, não é bom ficar sem nada para
fazer, pois é preciso exercitar a mente. — Ele se punha fixo à figura do
cavaleiro, os olhos porém meio que mareados e as pupilas dilatadas de
felicidade. — Creio que aprecies palavras rebuscadas e histórias bem feitas. O
que quer fazer, meu bom homem?
— Iremos entrar, mas com uma condição: a
de permitir-nos o silêncio. Atente para o lugar em que está entrando. Castelo
não é vila... Exige-se respeito e cordialidade. — Ele desmontou de sua montaria
e ela, revelando agora não ser um cavalo comum, esvaneceu-se no ar como fumaça.
O outro que os olhava logicamente ficou ainda mais perplexo, mas uma vez que já
iam subir e aquela explicação poderia demorar (ou mesmo o reservado homem
talvez não quisesse falar), optou por introduzir o assunto em outro tempo.
Devido ao contexto, esforçou-se apenas em dizer:
— Tens razão, meu bom homem, tens razão.
Permanecerei ainda ao lado vosso, mas em postura introspectiva e mais séria.
Obrigado por alertardes-me. — E ambos finalmente galgaram em passos rápidos os
degraus. Será que o servidor iria começar a tratar, ainda erroneamente, o
forasteiro por “vós” ao passo de “tu”, tentando talvez instaurar uma nova
hierarquia e formalidade entre eles? Pelo memos poupar-lhe-ia o silêncio...
ou... vai saber.
Os guardas da porta não fizeram objeção
quanto à passagem; mas alguns empregados se aproximavam, requerendo
informações, como se dissessem: “Não podeis entrar aqui”. Ao que parecia, não
constava entre as atribuições de dito servidor fazer visitas ao castelo; e, de
igual forma, ele teve de descer a explicações. Contudo, aquilo era bom:
satisfazia o ego do viajante, ao passo que impedia o homenzinho de contar
histórias e lendas do povo, que seriam imperdíveis e inusitadas segundo ele.
Exatamente no tempo previsto,
prostravam-se diante da porta real. O petulante servo entrou com o “novo amigo”
a passos demorados e decididos.
— Olá, nobre cavaleiro. O Senhor para, por
longo caminhar, a estas terras longínquas em busca de auxílio e descanso. As
atitudes de meus subordinados foram corretas: antes de permitir entrada a Vossa
Senhoria, consultaram seus superiores hierárquicos a fim de averiguar se seria
adequado ou não tal pedido. No presente momento, o Senhor adentra estes
domínios reais para ratificar tal permissão; sendo que, possivelmente, espera
que a ordem se estenda por mais um ou dois dias, ou até mesmo igual período de
luas, dependendo do cansaço e das fadigas de Sua jornada. Permita-lhe, contudo,
propor algo:
O rei, que estava sentado em seu trono
feito em dourado e pedras reluzentes, levantou-se comedidamente e foi ao
encontro do viajante. O servidor ao lado estacou-se também. Na certa, jamais
estivera tão perto de seu rei assim.
Emitiu, em alto e bom som, comando para
que todos saíssem (o que foi um alívio para o cavaleiro). Permanecendo os dois
a sós à grande sala, ele continuou:
— O que venho a lhe informar é um assunto
sigiloso. Como posso ver que Vossa Senhoria é um homem reservado, creio eu que
não terei problemas em relatar-lhe, estou certo? — Parou à voz, e esperou até
que o cavaleiro confirmasse fazendo qualquer sinal. Após, indicou-lhe uma mesa
circular de pedra, que apoiava um pequeno jogo de xadrez e estava em frente a
uma lareira. Ao redor, faziam-se sempre prontas duas cadeiras de metal prateado
e ricamente acolchoadas em couro azul-escuro, com braços trabalhados para
descanso de nobres. A audiência, então, poderia ser longa ou rápida, dependendo
do teor de tal assunto.
— Muito embora desconheçamos, em parte, a
respeito do Senhor, aqui se põe agora como hóspede em meu reino e em nossas
terras... — Ele não olhava mais para o cavaleiro, e em um pensativo e
estratégico ângulo agudo fitava de forma aleatória peças do jogo, sem iniciar
movimento algum. — Somos, ainda nestes tempos sombrios e de ameaças, um
território pacífico e prezamos pela neutralidade. Porém, éramos um povo muito
mais próspero e alegre no passado; e o que experimentou ao chegar aqui é
indício disso. Ainda conseguimos nos manter em paz, mas a um preço alto: o
isolamento. O que pôde parecer certa descompostura, foi-nos burocraticamente
necessário analisando o contexto. — E fez um esboço de jogada, mas não um
movimento válido. Andou com vários peões de uma só vez e os isolou à esquerda
de seu campo, no centro superior do tabuleiro desde onde enxergava. As peças
ficaram ali, voltadas para o calor e para o fogo da lareira. — Quero que Vossa
Senhoria distancie o olhar deste jogo por um momento e repare no acento real
com pedras. Após, percorra com olhares esta grande sala e depois encerre Sua
visita a estes objetos feitos de metal e prata. — O rei se colocava realmente
receoso e preocupado. Não apenas em saber quem era o hóspede, mas com certeza
atormentava-lhe algo maior. — Os peões que separei nesta extremidade
representam homens de nosso povoado. Em jornada, o amigo observou a colossal
cadeia de montanhas que circunda o vale, certo? ...Pois bem, subíamos a diário
tais relevos para extrair minério. — O ouvinte não tinha tanta paciência para
ficar ouvindo histórias, e as pausas o fizeram lembrar do petulante servidor.
Pelo menos, os relatos eram importantes, não fantasias ou alucinações de uma
mente menor. — Reinávamos eu e a prosperidade. Detínhamos grande parte dos
recursos naturais da região no passado e até algumas de nossas construções
podiam se dar ao luxo de serem fortificadas internamente com nosso aço e nossas
pedras de forja, não somente armas. Mas... nem todas as riquezas atravessam os
anos, e temos de admitir agora que nos imperava a ganância. Contudo... veja
bem: qual ser humano não se deixaria levar pela esperança de melhoria contínua,
visto que, em nosso reino, abundavam tais materiais?
O ouvinte já se perguntava quando poderia
interferir. Achou ser aquela uma hora propícia; mas não para responder a tal
pergunta do rei (retórica segundo o cavaleiro). Ousou abrir a boca para falar:
— Vós dizeis “nem todas as riquezas
atravessam os anos”. Receio pensar que nada atravesse, apenas a memória...
— És um homem sábio, cavaleiro. — disse
ele comedidamente e, apenas agora, mirava o visitante bem nos olhos. O monarca,
em posição indubitavelmente maior, poderia achar uma afronta e até mandar
prender o homem, mas não o fez e nem achou porque era claro o contexto: ele
precisava do forasteiro para algo. — ...Muitos homens subiam e desciam as
montanhas, e até instalamos acampamentos nas terras altas. Mas... conforme
fomos avançando, escutávamos barulhos do interior de uma em específico.
Ficou-se com medo de avançar. Mas, um dia, eu mesmo emiti o veredito para
extrairmos o máximo que nos fora agraciado. Esse foi o meu erro: a sede de
enriquecer.
O forasteiro pressagiava algo escondido na
história. Mais ainda, quando o “jogador” retirou o próprio rei e a rainha de
seu campo de xadrez e locomoveu as peças para junto dos peões, que se
subentendia terem galgado o cenário há anos.
— ...Para resumir, conseguimos escapar
quase ilesos. No entanto, hoje reconheço que, se nossa filha, Tamara, não
desobedecesse as minhas ordens e, insensatamente, não viesse em nosso
auxílio... Deveras! Não sei o que poderia ter ocorrido.
Ele parou e ousou tocar, como um conhecido
muito próximo, as mãos do soberano. Elas estavam frias e arredias, mesmo perto
do fogo. Qualquer um, naquela posição, mas que demonstrasse certa fraqueza, por
mínima ou familiar que fosse, era tido em escárnio e desacreditado. Razão pela
qual o pai não falava dos acontecimentos, e terminantemente proibia quem também
os presenciara até mesmo de se lembrar.
— Já viste algum membro da alta corte
chorar? Por obséquio, eu lhe rogo que esta conversa não a partilhe com ninguém.
Não é de nós esperado...
— Certamente, a fim de imperar poder e
distinção, não vos é aconselhável mistura. Mas, sois mortais também! —
Deteve-se na expressão, achou que estava falando demais. — Perdoai-me a
descompostura, meu rei. Trabalharei para que não aconteça de novo.
— Vejo em Vossa Senhoria um homem bom,
cavaleiro. Um homem sábio, valoroso, e bom. — Estava triste, enxugou seus leves
deslizes e depois falou: — Quisera eu que, não tão somente rei, fosse Deus, o
Todo-Poderoso e dono do destino; ou mesmo me fosse possível mover esforços a
fim de obrar esquecimento para certas almas. Mas... fatalidades acontecem. E
espera-se de um grande homem que vença suas adversidades.
Teatral e atipicamente, o narrador do fato
aproximou-se da janela, observando através do vidro algumas flores do jardim.
Seus olhos fixaram-se em um arranjo de lírios-do-vale e papoulas, as favoritas
de sua filha. Elas evocavam imponentes estandartes vermelhos de coragem e a
fragilidade humilde de anjos em prece.
O convidado, circunspecto no assento,
apenas esperou o rei voltar. Cada passo era difícil, e enquanto caminhava ele
louvou por “apenas um desconhecido” presenciar sua debilidade. Uma vez de volta
ao jogo, continuou:
— Nós nos amávamos muito, eu e minha
esposa. Ouso dizer, mais do que qualquer casamento arranjado pode proporcionar
à vida de duas pessoas que jamais se conheceram. Mas, como bem me deixou a
entender há pouco, nada é para sempre! Ellene, minha tão nobre e querida
consorte, partiu de outros agraves, tempos depois. Ficamos só eu... Eu e
Tamara... aqui neste castelo imenso!
Aquele que o ouvia manteve-se em um misto
de tristeza e esperança: condoía-se pela morte da rainha, contudo quis
eufemizar a memória do rei, lembrando que o fruto daquele amor estava vivo.
Deveriam ser muito próximos, e, embora a afronta, o rei educou a filha como
tinha de ser.
— Pode ver Tamara em meu grande anfiteatro
interno, talvez sentada de lado a olhar calmamente para as águas que correm o
salão. Ou ainda esteja ao jardim de inverno, que ornamentamos cobrindo o
inteiro lado direito e a parte de trás do castelo. Tais arquiteturas lhe trazem
liberdade; recordando o nosso poderio de eras passadas.
Após relatar, em parte, a difícil história
para o forasteiro, o rei se despediu de forma cordial, dando uma ordem
disfarçada sob a aparência de possibilidade. Resolvera também aumentar a
permissão anteriormente concedida ao cavaleiro, e agora este adquirira maior
mobilidade ao castelo e ao reino, distanciando a necessidade quase insuportável
de ser seguido por um servo qualquer aonde quer que fosse. O hóspede
levantou-se calmamente e saiu, decidido a se inteirar dos fatos.
Percorreu o inteiro aposento, atravessou
as portas, e passou pelos guardas reais sem ter de parar para satisfações ou
esclarecimentos. A caminho dali, ele e o servidor cruzaram uma grande e
suntuosa sala retangular ornada em ouro e prata e decorada com tecidos e
estandartes azul-escuros. Apenas fez o caminho inverso: Tamara já se encontrava
lá, em postura e semblante totalmente conformes às descrições que lhe foram
feitas.
— Princesa, vosso pai, o rei, falou-me
sobre Vossa Alteza. Estou honrado nos ter sido permitido tal encontro.
— Vossa alcunha de “o cavaleiro sem nome”
já se espalha como fagulha em meio à plantação. Tendo já estado à presença de
meu ilustre pai, bem sei que se trata de uma pessoa digna — dissera as frases
todas ainda em mesma postura, ratificando a distância entre eles. O visitante
respeitou.
Não se falou mais nada e somente se ouvia
o fluido som das águas correntes, irrigando harmonicamente todos os lados do
salão. Ele mantinha certa hesitação em dirigir a palavra à filha do rei,
porquanto não se conheciam, e ainda mais por ser o próprio soberano quem
dispusera tal encontro.
— Provavelmente, o rei enxergou no Senhor
uma oportunidade. — Ambos, por serem pertencentes às altas camadas sociais,
eram decididos. Contudo, o forasteiro achou a filha mais objetiva que o próprio
pai, por ir direto ao ponto. Já emitia os seguintes dizeres com olhos bem
voltados à curiosa figura. — Permitindo-me a franqueza, todos os homens do rei
são uns fracotes. No passado, eram mais pomposos e até petulantes, mas
desconfio que já se enquadrem hoje aos plebeus.
O monarca não mentira sobre as qualidades
de Tamara, e sua audácia era estampada até mesmo em suas escolhas lexicais.
Relatou os anos de prosperidade, mas, sem rodeios ou comparações
desnecessárias. Encarando as sortes do destino, passou às adversidades do
reino: relatou como as subidas às montanhas ficaram cada vez mais perigosas,
reforçou as atitudes um tanto persuasivas de alguns daqueles homens ao tentar
convencer o rei a deixar o posto ao castelo; e, por fim, com certa inegável
satisfação, descreveu sua própria incursão para salvar os dois. Segundo a nova
autoridade, fora bom pois ali os demais de lá de cima revelaram seus
“verdadeiros valores” diante de um grande perigo.
O cavaleiro encontrara alguém ímpar, com
atitudes criteriosas e fortes, dignas de status da realeza, e de uma possível
grande monarca. Ele perguntou se a princesa tinha irmãos, e após um leve
desconforto ela respondeu que não, o que a faria sucessora direta do pai. Era
estratégica em palavras e atos, digna de liderar um povo, e não se deixaria
dobrar por propostas vãs ou curiosidades alheias como descobrir “o que se
escondia à montanha”. No entanto, não desejaria governar, e aprazia-lhe mais a
ideia de defender seus ideais e o reino na prática do que pura e simplesmente
refugiar-se no castelo, aparecendo somente quando necessário. Não se perdia,
claro, o rigor necessário à formalidade, mas a conversa foi se equiparando
naturalmente à fluidez e à transparência das águas.
— Cavaleiro! Acredito que o momento tenha
sido auspicioso, mas creio também que a atenção às horas é agora uma questão de
necessidade. Não me sinto à vontade para dar ordens por agora, mas eu lhe
aconselho ter-se novamente com meu pai. Provavelmente se encontrará na mesma
sala do trono.
Despediu-se conforme o contexto, e então
errou para os aposentos reais. Lá chegando, o rei, que estava pensativo ao
centro, perguntou-lhe se conhecera Tamara, quis se inteirar sobre o ritmo e o
teor da conversa, e buscou captar através dele sobre o que a filha sentia no
momento; pois eles não se falavam muito como antigamente.
A conversa permitiu-se ser amistosa, mas
em tom solene. Fora mais rápida do que a anterior, ou mesmo o cavaleiro não
sentira tanto porque os assuntos foram bem objetivos no anfiteatro. Bem
imaginara que ela deixaria seu ego falar mais alto, narrando sobre sua já
sabida aventura épica, e não desceria a assuntos adjacentes, como o futuro
falecimento de sua mãe. Tamara tinha um ego inflado igual ao do pai, mas qual
nobre não gostaria de contar vantagem sobre si, enaltecendo sua própria figura,
ora?
— O sol já começa a tanger o Oeste.
Partiremos ao encontro de minha filha. Pretendo finalizar nossa reunião com ela
presente, uma vez que assumirá quando eu vier a repousar.
E, eles voltaram. O forasteiro, por entre
passos mais firmes que os do rei, recordava-se da longa espera para entrar no
pacífico reino. Contudo, mantinha o foco às inferências atuais: por qual motivo
um grande monarca necessitaria de companhia para falar com a própria filha, e,
ainda mais, de alguém estrangeiro?
— Minha doce e amada Tamara, regozijo-me
por vós e nosso hóspede vos haverdes portado com esperada cortesia. — Tão logo
o soberano entrou, localizou a filha de costas, sentada em uma cadeira alta de
madeira, voltada para uma parede em alto-relevo. Ele emitiu, em voz forte, a
sentença e deixou transparecer que talvez não tivesse perdoado a antiga ofensa,
mas, de igual modo se via deverasmente alegre ao reconhecer que herdara dos
pais a coragem e a responsabilidade frente aos fatos. — Vossa atitude nos trouxe
consequências, sabeis bem. No tocante a nós mesmos, e ao povo de nosso reino.
Caso permanecêssemos após o fato na mesma relação pai-filha, tal atitude
poderia não ser vista com bons olhos, uma vez que, como rei, devo agir com
pulso firme enquanto autoridade máxima. — O cavaleiro que tudo observava achou
válida aquela explicação, e esperava para ver como o rei continuaria a fala,
que evocaria reminiscências e poderia certamente ser longa. Todo o salão
conservava seu ar característico, porém, uma coisa não estava em conformidade.
Seus instintos procuraram, mas não souberam identificar o quê. — Muito me queixo sobre isso, mas o contexto
não me permitira outro jeito. Em minha posição, o embargo fora a mim burocraticamente
necessário.
O pai andou alguns passos para frente e
tocou o ombro esquerdo da filha. Seus olhos, porém, mantinham-se fixos à linha
do horizonte, e admiravam a linda pintura na parede. Somente após, desceu os
olhares à princesa.
— Tamara... Tamara... Oh, céus! O que
aconteceu?
A calidez dos lírios... enfim encontrou
repouso para o coração da nobre. Seu tronco e sua postura ainda se colocavam
eretos e firmes como colunas, mas seus olhos e sua vida já eram distantes como
as águas que se perdem no vasto horizonte.
O cavaleiro logo quis consolar o rei,
porém este levou a cabo uma atitude mais rápida. Tão rápida e impulsiva como há
muito não tivera.
— Patife! Confio no Senhor, e é assim que
retribui minha hospitalidade? Guardas... prendam-no!
O grande anfiteatro, antes vazio e ocupado
apenas pelos três, começou a se encher de subordinados do monarca. Deveriam ser
de cinco a oito homens, todos armados segundo a ocasião e visivelmente
satisfeitos por estarem executando aquela ordem específica.
Eles, de espadas e escudos em punho, foram
de encontro ao forasteiro. Este, porém, não se abalou, tampouco adotou uma
postura igualmente ofensiva. Desvencilhava-se dos golpes e apenas defendia,
usando toda sua perspicácia e estratégia.
— Diga-me vós, ó grande soberano: qual
motivo teria para incutir contra vossa filha?
— Deveras, desconheço ainda os seus
propósitos, mas... o cavaleiro há de convir que: a simples presença de Vossa
Senhoria evoca mistério.
— E tão somente por optar por um
particular sigilo sou tido como inimigo do reino? — Provara da mesma ira de
quando estava à segunda espera para entrar nas terras. Olhou para sua mão
esquerda, mas depois pensou melhor e não o fez. — Como desejais, faremos assim:
instalar-me-ei nas masmorras do castelo, enquanto sondais sobre o que
acontecera de fato. Estou certo de que sois um homem justo...
Aproveitando a oportunidade, o servidor
mais próximo do visitante chegou com uma grossa corda e amarrou suas mãos. Por
entre olhares perplexos e um tanto quanto irônicos, como se dissessem “que
tolo, ele realmente acha que irá atenuar sua pena ao se entregar”, viram os
dois saírem rumo ao subsolo. Em seguida, o rei ainda de olhos fixos na princesa
ordenou que os demais também se ausentassem, e assim ficou a sós com suas
lembranças.
A visão das outras alas do castelo
afirmava o poderio e a imponência da construção. Deixaram a sala por uma
passagem secreta lateral, que se abria e se fechava pressionando levemente as
mãos contra a parede, como se mergulhassem na tal pintura em alto-relevo.
Usaram outra rota para alcançar a sala do trono: um atalho sufocante, mas
silenciosamente menor. Passaram por ali sem cerimônia e logo caíram em um largo
corredor de atmosfera cálida e amplas janelas de vidro, as quais fizeram o
hóspede lembrar-se da cena em que o rei via as flores no jardim.
Gradativamente, as vidraças foram sumindo e aparecendo mais portas de metal,
que eram fortificadas com chapas de aço nas laterais à medida que se avançava.
A umidade e a calmaria das águas de antes contrastava com o ambiente seco e
intimidante dos candelabros que agora se enxergava.
— Espero que o Senhor se instale bem. —
Fez essa afirmação, logicamente sarcástica, enquanto o desarmava por completo.
— Aproveite a estadia, quem aqui chega sem dizer-nos o nome...
Sem oferecer resistência, o prisioneiro
foi desamarrado e acomodou-se de cara fechada à cela. O subordinado do rei
subiu depressa, e, intencionalmente ou não, lançou um ar a mais de tensão à
cena. Ficou a sós, fazendo uma conta rápida de cabeça para descobrir a real
extensão do cenário. Estava em uma câmara pequena e baixa, cujo teto era
sustentado por dois arcos de pedra marrom. À sua direita e à sua esquerda havia
similar arquitetura, ambas vazias. Apesar do mal-entendido horas antes,
mantinha-se confiante e ciente de suas ações. No entanto, já era noite e a
escuridão tomou conta do lugar, trazendo consigo uma sensação de tristeza. Não
sabia quanto tempo mais gastaria ali.
v
“Estou certo de que sois um homem justo”.
Repassava o homem ao registrar oito ciclos inteiros à parede mais ao fundo da
cela. Sua barba estava começando a crescer e, pela comida que lhe forneciam,
achou-se um pouco mais magro.
Suas únicas companhias eram o seu próprio
eco e a alheia solidão, uma vez que não havia tanto o que fazer, muito menos o
que guardar, nas masmorras. Sem janelas e nem aberturas, era difícil esboçar o
passo do Sol aos céus, mas ele apostava que já seria depois do almoço, pois um
servidor louro tinha acabado de deixar um magro repasto ali.
— Ei... Psiu... Olá, meu bom amigo. Parte
o meu pobre coração saber que estais aí há tanto tempo.
Uma figura de capa e capuz escuros correu
até a grade tão logo percebeu que estavam sozinhos. O prisioneiro não precisou
de muitos esforços para identificá-la: só um alguém no inteiro reino se
referiria ao cavaleiro pelo pronome “vós”.
— Ah, és tu. — Optou por um tratamento
errado também, não tão somente porque o servidor lhe tinha dado respaldo, mas
ainda para inferiorizá-lo e afastar a proximidade. — O que vens fazer por aqui?
O servidor sentiu-se honrado por, segundo
o próprio, ser mantida a relação de amizade entre eles. O esquema de segurança
dos pisos inferiores era um tanto quanto falho, mas o petulante homenzinho de
mesma forma não se demorou. Atitude, ainda que sem ter base estratégica sólida,
o cavaleiro reconheceu.
— Vossa situação não é mesmo muito
conveniente, além do contexto em que apareceis nestas terras. Porém,
alegrai-vos! Estou intercedendo junto ao rei para que não haja algum julgamento
precipitado. Ah! E fiqueis tranquilo pois vossas armas estão em segurança em
minha casa, um pouco afastada do castelo mas ainda na cidade, escondidas de
olhares de escárnio. — E, assim, ele se foi. O prisioneiro, ainda que não
esperasse jamais tal visita, ficou surpreso em saber das qualidades furtivas do
rapaz, e poderia traçar, através do fato, um plano de fuga caso a situação se
delongasse sem motivo.
A cabeça do cavaleiro se inclinava contra
ao chão, e seus olhos apenas viam a poeira do lugar, nada mais. Porém, seus
pensares se dirigiam ao alto, buscando prever o que o rei faria, e qual seria
exatamente o grandioso assunto que lhe seria revelado dias atrás. No entanto, a
comida, por mais insípida que fosse, logo esfriaria... Apartou-se dos assuntos
alheios, pois realmente não os controlava, e ingeriu a refeição. Fez alguns
exercícios de luta para manter o corpo aceitável, dentro da medida que lhe era
possível.
v
— Cocheiro, muito nos falta para
vislumbrarmos o reino?
— Não, Senhora! A torre leste de vigia já
se deixa ver no horizonte. A este ritmo, ali chegaremos antes da oração
matinal.
Rosselle, a dama de companhia da princesa
Tamara, voltava ao reino após um período com sua família em um vilarejo perto
de uma floresta. Ausentou-se para ver sua mãe, já de saúde frágil pelos anos,
enquanto folgava do rigor das rotinas de ofício e oferecia apoio para as suas
duas irmãs. Graças aos Deuses, a matriarca melhorou sem demora; mas, ao
atravessar as fortificações de segurança, notara um mau presságio nos olhares
de alguns.
Cruzava as ruas já desconfiada do que
poderia ter acontecido. Pessoas a paravam para saber da viagem ou para
distraí-la com conversas simples; outras apenas a seguiam com olhares evasivos
e tristes. Fez ainda compras no mercado, utensílios de que precisaria no
castelo, e galgou a escadaria cumprimentando os guardas como de costume.
— Meu rei, em nossa tenra existência,
passamos por diversificados momentos: alguns bons, outros não tão agradáveis.
Cumpre-me informar que minha mãe passa bem, porém certa inquietação aflige meu
coração quanto ao que possa ter ocorrido em minha ausência.
— Aquele que começara a executar tal plano
já se encontra preso. Receio ter cometido um deslize ao confiar no homem, ainda
mais sendo um forasteiro...
— Desculpe-me... Perdão, meu rei. De quem
falais?
O monarca estava de frente para a dama de
companhia, mas pôs-se a olhar a janela e correr com os olhos novamente o
jardim. Não sabia discernir ao certo o que sentia: se era fúria por ter deixado
um desconhecido a sós com Tamara, ou se acreditava ser todo o fato uma
oportunidade que o destino os concedera.
— Logo após deixardes vossos afazeres
laborais, minha cara Rosselle, um tal cavaleiro sem nome avistara nossas
terras, e sua petulância o fizera adentrar em meus domínios. — Ele gastou mais
tempo admirando as flores, e depois tornou os sentidos à criada. Aquilo, mesmo
ao aposento fechado, permitiu renovados ares ao soberano. — Acredito que não
conseguisteis esquecer da fatalidade que a princesa lhe contara... É uma dádiva
o fato de que sois muito próximas, e me apraz saber que esse vínculo se
estreitou com o passar dos anos. — Evocou, em eufemismo, a memória da rainha.
E, sim, a servidora fazia esse papel de bom grado; embora, logicamente, não a
substituísse. — Sabeis sobre como se deu continuidade à nossa relação pai-filha
após os tempestivos dias. Logo, a princesa passava mais tempo sozinha, a errar
nosso jardim de inverno e, em todo este grande castelo, seus próprios aposentos
e nosso anfiteatro, construções que lhe transmitiam paz e coragem.
Reiniciou o discurso, ainda que próximo e
amigável, não de forma aleatória, mas sim de maneira estratégica. E suas
palavras realmente deixaram a destinatária preocupada, um pouco com culpa por
ter se ausentado das funções. Mas, ora, muito tinha trabalhado nos últimos
dias, e um familiar em tal estado requeria digna atenção. No entanto, aquilo
não era verdadeiramente uma ofensa, somente uma chamada de atenção.
— ...Ah, os bons momentos que passamos com
Tamara... Vossa filha era uma menina meiga, e destemida, a seu ponto. — Tendo
aprendido já a conviver com os leves desgostos em meio à corte, resolvera
amolecer mais ainda o coração do rei. — As copiosas e fortes qualidades da
princesa vêm de berço, e seu gênio de liderança está inato em sua gênese como
púrpura de polvo que se fixa eternamente em vestes reais.
O monarca sorriu por entre os lábios e a
memória engrandeceu sua alma. Contou o que aconteceu e, sobre como achava ter
se sucedido o desfecho, para a criada. Os detalhes e as inquebráveis relações
familiares faziam-no demorar, como alguém que visa segurar as palavras à boca
para não ter de contar o inevitável.
E o relato caía de forma árida e cruel no
coração da ouvinte. Ela, em vista de sua classe, não se preocupou em chorar. O
rei, por sua vez, já conseguia esconder os resquícios da dor, uma vez que
estava com uma pessoa que convivia diariamente, além de já ter tido o seu
momento, em silêncio.
Humildemente pediu ao soberano para que
ela mesma descesse às masmorras e falasse com o tal prisioneiro. Ele consentiu,
solicitando que assim lhe transmitisse também suas desculpas reais; já tinha
passado, deveras, algum tempo, e ele priorizava outros assuntos que,
administrativamente, teriam mais urgência. Rosselle foi, mas antes de se
dirigir aos andares inferiores, passou aos aposentos da princesa como o normal
de toda manhã. O quarto se conservava intacto e imune às adversidades do
tempo... nem mesmo as janelas estavam abertas. Ajeitou celeremente as coisas
como se Tamara estivesse lá, e tomou novo ar para enfrentar a futura conversa.
Descendo, concluía mais ainda que o rei, apesar de exímio e estratégico
governante, mostrava sua fragilidade ao tratar de assuntos de família. Isso se
evidenciava tanto pela postura de não entrar no quarto, emitindo ordem para
terceiros também não o fazerem, quanto pelo recém pedido à criada, pois optava
por sentar-se ao trono ao invés de encerrar de uma vez aquele difícil impasse.
Lá embaixo, ele terminava de correr em
círculos à cela, concluindo como podia seus exercícios matinais. Não havia
muito o que fazer sob aquelas condições, e o cavaleiro até começava a sentir
falta de seu “amigo” servidor, o petulante homenzinho. Passava a maior parte do
tempo sozinho, e os guardas faziam questão de reforçar sua solidão para mostrar
zombaria e poder, lembrando-o ali não passava de um estrangeiro.
Os escassos e únicos esforços que o rei
movimentara sobre o caso foram apenas dois: A atitude de preocupar-se com
alguém enviado à prisão, além de selar um decreto que fez seu próprio
conselheiro varrer áreas adjacentes ao castelo em busca de informações sobre o
tal homem misterioso. Transcorrido o tempo estipulado para a missão, o servo
retornou sem alguma novidade ou pista sequer. O fato corria timidamente, tão
vazio como a poeira do lugar mal iluminado.
— Forasteiro sem nome, olá. Sou Rosselle,
a dama de companhia da princesa Tamara. — A figura que se aproximava trajava
vestes claras, em oposição aos detalhes da roupa do outro visitante, quatro
dias atrás. Sua voz era firme, mas não hostil, carregada de uma autoridade
delicada. Ao caminhar em direção ao prisioneiro, os passos soavam como uma
orquestra silenciosa, controlados e precisos, o que indicaria controle da
situação. Quando parou à frente dele, inclinou levemente a cabeça, apenas o
suficiente para transformar a saudação formal em algo inusitadamente pessoal.
— Então, já sou digno de que Sua Majestade
envie hoje um de seus próximos a fim de... solucionar o caso? — Ele também
adotara uma postura firme à voz. Um tanto quanto irônica, de fato, mas porém
carregada de verdade e justiça pela escolha das palavras “já” e “hoje”. —
Novidades acerca do reino ou dos agraves que Vosso rei começara a me contar?
Ela enxergou que a efígie daquele
cavaleiro maltrapilho refletia um semblante forte e resiliente frente aos
infortúnios do acaso. Ambos repassaram rapidamente suas chegadas, e finalmente
foi a atual visitante, uma simples serva da alta nobreza, quem teve a coragem
de aclarar toda a situação para o visitante:
— Antevejo que o Senhor tenha conhecimento
das adversidades que podem acometer os viajantes, sobretudo os menos atentos. —
O final da frase foi um teste: ficou esperando que o cavaleiro esboçasse um
sorriso de vantagem. Aliviada, não notou alteração em sua face, e a conversa
transcorreu como o previsto. — Existem dois tipos de envenenamento conhecidos:
os normais, que fazem a vítima perder suas forças gradativamente, e as ditas
toxinas, operando aos humanos uma debilidade maior e mais rápida em alguns casos,
de acordo com o tipo de animal ou ameaça que os tenha atacado. Algumas luas
após o ato heroico da princesa em salvar os pais, seus valores e coração reais
a impulsionaram a traçar um plano, no qual ela mesma subiria ao coração da
montanha para derrotar a ameaça. No entanto, por um aviso travestido em
adversidade, contraiu veneno de harpia durante o curso do caminho. Sem recursos
atuais para cura, teve sábia decisão em voltar. Mas com a promessa velada de,
claro, continuar depois.
— Receio, pelo que falais, que outros
padeceram em igual tentativa. — Iria acrescer a expressão com “outros tantos”,
mas não o fez, pela mesma cordialidade ao conservar-se incólume após anteriores
dizeres da criada. A escolha por “padeceram” suavizou a cena, e deu mais
solenidade também às memórias dos que teriam partido. — Tendo agora como
escassas essas almas ao reino, suponho que o rei desejasse confiar em minhas
capacidades para fazer frente a tal inimigo, e, assim, retornasse com a
prosperidade a estas terras.
O prisioneiro estava triste, sim, pela
morte inesperada de Tamara; porém, as sombras e fumaças de antes já não lhe
pareciam tão impenetráveis. Agora poderia trabalhar mais em sua própria defesa
(caso um fato novo lhe fosse permitido) e, apesar de não acreditar muito em
encontro dos astros ou profecias, errava ao enxergar sua estadia lá como algo
novo que tinha de ocorrer.
O cavaleiro fez um esforço também para
tirar os olhos das grades que os separavam e repousar sua mirada ao rosto
compassivo e direto da criada. Podia concluir também que, o rei não incorrera
em ofensa ou injustiça alguma contra sua pessoa graças aos assuntos que
Rosselle agora lhe revelava. O cavaleiro optou, então, por falar menos dele,
enquanto buscava se inteirar mais do fato:
— Em todas as minhas viagens e andanças,
não conheci alma feminina tão valorosa e digna quanto a da princesa, Sua
Alteza. — Fez uma reverência, mesmo que ela não fosse a real autoridade da
sentença. A dama apreciou sua atitude respeitosa, e se sentiu honrada de ser
comparada à rainha por mais um último instante. — Respeitosamente peço perdão,
mas desejo saber: Tamara chegou a ver o que lá se escondia?
— Sim. Em sua primeira incursão, ainda
havia um número considerável de homens ao trajeto, e a constante vigilância
impedia os monstros de se proliferarem ali. A expedição real já tinha entrado,
com apenas alguns soldados montando guarda à entrada da caverna, caso algo
externo lhes ocorresse. A destreza de minha senhora em armas era incomparável e
conseguia a façanha de abater até mesmo o vento em agilidade, e fora isso que a
fizera entrar; o que, para mim, vale mais do que qualquer levantar de alabardas
de quem apenas vigia portas ou entradas de gruta... — Ela foi ácida e
demonstrou uma postura mais séria em suas últimas escolhas lexicais. Ao que
parecia, a filha também herdara o gosto por um maior detalhamento de cena, mas
com um enfoque mais objetivo e sem tantos desvios em comparação ao pai. A
perspicácia da princesa a tornaria boa estrategista, trabalhando por visualizar
possíveis atalhos em mapas, talvez jogando com o ambiente e os elementos do
cenário ao seu favor. Mas, por infortúnio (o qual todos inevitavelmente
passariam), a luz deixara seus olhos muito antes daquilo tudo se concretizar...
Mas, que bom, conviveram em harmonia, e aproveitaram dos momentos bons. — Os
musgos das paredes da caverna e o som das águas que serpenteavam pelas rochas a
fariam lembrar-se de casa, se estivesse sozinha e em uma situação mais
tranquila. Porém, o clamor das espadas e escudos ecoava pelo cenário circular,
e o chão ainda com resilientes plantas tremia sob o fluxo do magma derretido,
que se arrastava lentamente, como um perigo ardente e deveras próximo.
“Alteza, o que fazeis aqui?” Um servidor,
desvencilhando-se de obstáculos, dirigiu-se a ela conforme o contexto.
“Não há tempo... temo que vosso pai...”
Outro homem veio, olhando onde pisava.
“O quê? Foi bom ter vindo aqui...” Tamara
concluiu, e assim entrou de vez à disputa.
— E, minha valente senhora, a futura
rainha, seguiu. Cruzou o grande cenário de forma rápida e destra, defendendo-se
a correr lateralmente pelas rochas, sabendo as horas certas de pisar no solo
olhando a consistência do magma. Os monarcas estavam a poucos metros, rodeados
por uns três ou quatro homens incapazes. E digo debilmente incapazes porque,
parece que o treinamento, apesar de bastante eficiente, não fora eficaz para
prepará-los para isto: um escamoso e negro wyrm, que os encurralava e parecia
petrificá-los de medo.
Já se avizinhava novamente o final da
tarde, mas o cavaleiro se conservava em olhos e sentidos bem abertos, pois
aprazia-lhe a adrenalina da memória evocada em tom épico. Narrou em sequência
que a princesa, tão logo pressentiu que ali estivessem, bateu com a sua furtiva
espada de lâminas duplas ao seu escudo que levava às costas. O retumbar dos
metais fez a criatura voltar sua cabeça para a nova desafiante, e com isso os
nobres que protegiam o rei e a rainha escaparam. Uma furiosa bola de fogo
irrompeu em sua direção, mas a garota não estava mais lá, e com maestria já
galgava as escamas do grande animal, talvez pensando em outro plano arriscado.
Focou bem na voz aos espantos dos pais, pois eles não sabiam se olhavam para os
guardas, clamando para que fossem ao encontro deles, ou se temiam pela filha,
que estava em algum lugar ao dorso do bicho, como se ele fosse um indefeso e
dócil pônei ou cavalo.
Ponderou que, realmente, a princesa
vacilara, mas em invejável atitude pulou, com um salto certeiro e digno, ao
lado da mãe, que não sabia se ria satisfatoriamente entre a boca ou se ali
mesmo recriminava a filha com uma testa franzida. Desvencilhando-se de uma
rajada flamejante que varreu o ar, ela os defendia com seu comprido escudo em
formato de elipse e incrustado por duas pedras escuras nas extremidades.
Aprazia-lhe admirar tais cenas, mesmo que
imageticamente. Estava acompanhando, mas Rosselle abruptamente cortou dizendo
que, recalculando o risco, tiveram de se retirar. A dama de companhia também
pediu desculpas, pois tinha outros assuntos a tratar, e de mesma forma deixou o
prisioneiro a sós.
Minutos após ausentar-se, ele confirmou
que avançavam as horas, pois um servidor já trazia nova comida para o
cavaleiro. E, não foi qualquer um: as vestes escuras delatavam ser, novamente,
a figura do petulante homenzinho. Não era mais necessário, porém, sua
interessante habilidade em passar despercebido, porque seus esforços em relação
ao caso já surtiam efeitos, possibilitando-o tomar uma postura mais vigilante.
Atipicamente a conversa foi até rápida e
agradável, enquanto ele devorava uma coxa de frango que “o amigo” furtivamente
tinha pego cozinha do castelo. Mantinha a atenção ao presente, contudo seus
pensamentos fugiam para horas atrás, quando compreendia os reais reveses em
questão. Após a companhia sair, e tendo finalizado a refeição, requereu novo
ânimo e executou a mesma série de exercícios de antes. Pois, ainda, não havia
muito o que fazer.
v
— Senhor, após seu matinal desjejum,
queira me acompanhar. — Um outro homem, dessa vez um guarda todo paramentado e
não a visita de dois dias atrás, falou conservando um sorriso de malícia.
Trazia, o que parecia ser, a última ração do prisioneiro e a passou pela grade.
Enquanto o servidor, com ar de superioridade e satisfação, observava-o comer
como um cachorrinho, ele assumiu para si mesmo que o recurso de maior sustento
provido à cela fora, deveras, a tal coxa de frango, que o simples homem tinha
trazido. Como nas outras vezes, devorou o conteúdo do prato. Subindo com o
nobre, desarmou-se um pouco de sua postura rígida e permitiu chamar o petulante
homenzinho de amigo.
— Olá cavaleiro! — O rei optara por
recebê-lo no anfiteatro, ironicamente uma das últimas visões de liberdade do
forasteiro. Uma vez estado ali, ainda lembrava de todos os detalhes: dos
estandartes erguidos e dos tecidos em elegante azul-escuro que desenhavam suas
quatro sacadas, das paredes e arquitetura em harmônicos tons de cinza prateado
e amarelo reluzente, das cadeiras de madeira e dos bancos enfileirados como em
escadas que se direcionavam para o centro, e finalmente do som das águas
correntes que acresciam mais vitalidade ao cenário. Era bom respirar ar puro,
mas meio sufocante ao ver que mais nobres estavam ali. — Pressuponho que o
Senhor se recorde dos fatos que se sucederam aqui nesta sala. Sua atmosfera
conserva os mesmos padrões, e as mesmas lembranças, de outrora, com o requinte
de uma leve modificação: a cena representa agora um tribunal, onde meu
particular conselho e eu deliberaremos sobre vosso destino. — O monarca abria
os braços a demonstrar magnificência. Ambos se olhavam bem nos olhos.
— Estou certo de que sois um homem justo,
Majestade. Sendo esta a melhor, e mais viável solução, prosseguiremos...
Risinhos abafados e blasfêmias tipo
“quanta empáfia” se faziam ouvir pelo cenário. O presidente do tribunal ordenou
silêncio, e continuou ecoando sua forte voz:
— Senhores... Há aproximadamente 15 luas
atrás, aos primeiros toques do implacável inverno, um viajante misterioso para,
por longo caminhar, a estas terras longínquas em busca de auxílio e descanso. —
Não foi somente o então condenado quem recordara uma antiga fala sua, mas
também o soberano guardava similar estratégia. De acordo com o seu feitio e
características reais, o julgamento iria demorar... — Apesar de ter se negado,
por alguma ou outra razão, a dizer o próprio nome, abrimos os portões de nossa
cidade para dito nobre, pois sua petulância e cinismo ratificavam que era um
cavaleiro. No entanto... — e gradativamente enquanto proferia a conjunção,
voltou-se à efígie do homem abaixo de todos. Os ânimos estavam acirrados e as
ofensas cortavam mais do que espadas. Como a cena continuaria? — Com eloquência
afiada, sorrateiramente entrara em nossa casa e tão logo conquistara o direito
de uma audiência, sem precisar de mais do que suas palavras e de seu olhar
imperturbável. ...Cheguei a buscar informações sobre Sua pessoa, mas não
encontrei um alento sequer. Receio, porém, que devesse ter empregado mais
esforços, embora não sejais digno de tantas preocupações, pois atravessando os
limites já não seria seguro, nem mesmo prudente.
O condenado sabia o que significavam as
pausas à fala do rei, e a alegria o assomou ao reconhecer que seu sigilo
continuava mantido. Caso estivesse ainda lá embaixo, estaria novamente
treinando, ou criando mapas ou estratégias de batalha com os dedos à terra.
Mas, que bom, já tinha retornado ao ilibado convívio das pessoas livres, e as
preocupações ligeiramente mudaram.
— Por que Vossa Majestade não nos
esclarece o contexto em que me prendestes? — Agiu de forma realmente impulsiva,
mas depois que viu, já não dava para voltar atrás. O destinatário da ofensa
franziu o cenho, enquanto preparava outro discurso. Tirou os olhos dele e
voltava à plateia.
— Senhores, parte de mim deseja esquecer,
mas não somos, e nem seremos, capazes de apagar o inevitável. Pensava que, como
rei, fosse necessário afastar-me da princesa e permitir-lhe o tempo para
refletir sobre suas ações e consequências. Ponderava que, como monarca, talvez
fosse melhor não intervir e deixar o destino desenvolvê-la como a futura rainha
que um dia se tornaria. Concluía que, como pai, pudesse ser mais auspicioso
esse afastamento... pois, jamais seremos capazes de apagar o inevitável.
E assim o julgamento se procedera:
caminhando entre meandros da racionalidade dos fatos e dos abismos e atrações
da emotividade, com uma atípica ausência de testemunhas.
— Saiam todos! — Mais uma vez, o soberano
varreu a sala com a sua imponente voz. Tão logo ouviram, os guardas e nobres
que ali estavam começaram a sair, alguns ainda com sorrisos, outros em
indecifrável silêncio. O cavaleiro engoliu um seco e... pegaria no cabo de sua
lança, caso estivesse com ela. Andava de costas ao passo que o presidente da
cena se aproximava.
Os raios de Sol que penetravam pelas
compridas janelas de vidro do aposento eram entrecortados pelo ritmo lento e
maquiavélico do rei. O chão reluzia os brilhantes da sala, e, apesar de
trabalhosamente encerado e limpo, o antigo prisioneiro recordava a poeira e o
descaso de suas anteriores instalações. Tudo ali era bonito, mas podia, de uma
hora para outra, acabar.
— ...Golpe do acaso! — Com o aço de sua
espada, tocou o ombro direito do viajante, como quem concede títulos a outrem.
O gesto parecia uma ironia diante das circunstâncias que lavaram Tamara a
falecer. Não fazia sentido: o antigo condenado tinha certeza de que o pai
acreditava que ele, aproveitando o momento a sós com sua filha, a tivesse
matado. Ao que os atuais acasos indicavam, o progenitor poderia desconhecer,
porque não, sobre as adversidades enfrentadas por ela em sua segunda subida às
montanhas. E... escolhera-se aquele palco pois assim preservar-se-ia o sigilo
da situação, evitando falatórios à toa ou mexericos ácidos da plebe.
O fluir das águas percorreu os quatro
cantos da sala mais uma vez, e finalmente alguém ousou adentrar o aposento. Não
se ordenou, contudo, a entrada de terceiros, e pairava um clima de tensão no
ar, com o metal frio da arma ainda sobre o ombro do cavaleiro.
— O destino a moldaria, com certeza, em
uma exímia e atenciosa rainha. — Ele tirou a lâmina do tronco superior do
rapaz. Olhando para trás como se não soubesse quem se aproximava, não disse
nada mais, porém pegou uma carta das mãos da nobre que entrou. Voltou seus
sentidos para o homem, e assim falou: — Eis que porto uma carta de minha
corajosa e amada filha, esclarecimentos que se convertem em provas para... a
inocência do amigo. Contudo, alertai-vos: esta é uma conversa sigilosa, não
saiais por aí espalhando aos quatro ventos. Façais somente o que eu mandar.
A servidora que trouxera a tal atestação
era Rosselle, e o também ignorante ficou feliz em revê-la. O rei abriu o
material com cuidado, e a mente do viajante pôde observar mais vividamente o
antigo relato da criada. Além de copiosa responsabilidade da princesa em
promover a justiça, eram invejáveis seus níveis de instrução e seu gosto, igual
ou melhor do que o monarca, por construção e detalhes de cena. A carta era
longa, e permaneceram ali até os sons da noite.
— Necessitais, claramente, de descanso e
melhores refeições. Disponibilizaremos ao Senhor tranquilidade para os devidos
estratagemas e treinamentos necessários. Ao longo de vossa jornada até aqui,
notei que ficou mais próximo de um de meus homens. Ele irá acompanhá-lo no que
precisar. Com bondade...
E então, a figura do petulante homenzinho
apareceu, dessa vez com reluzentes roupas reais e ostentando um estilo de
cabelo que não se via em meio às ruas.
— Olá amigo! É bom revê-lo aqui no
convívio da corte. — Fez a devida reverência ao superior, dizendo “agradeço,
Vossa Majestade” em alto e bom som, e já acompanhava o forasteiro à saída,
contando feliz de suas relações e novas amizades ao castelo.
v
Mais oito dias se passaram, e o novo
escudeiro do nobre forasteiro já tinha levantado, antes mesmo de os galos
anunciarem o amanhecer e das ruas em sequência se encherem de pessoas para
movimentar o comércio local.
— Quem vem lá!? ...Oh, é a senhora,
Alcaide Déhla. — Ele ficou meio desapontado, mas fez ainda assim as honras da
casa como podia. Estava apressado com alguma coisa. — Hoje é o grande dia: meu
amigo e eu iremos finalmente desbravar a colossal e há muito esquecida paisagem
de montanhas que observamos ao longe, ao redor deste povoado. Eu, se a Senhora
me permite dizer, estou tão tomado de ânimo que já não me sustento. Vamos lá
para as cordilheiras vamos lá, a serpentear as galerias vamos lá...
Ele corria atônito de um lado para o
outro, a arrumar a melhor mesa da casa para sua superior. Enquanto arrumava,
começava a cantar uma melodia alegre feita por ele. Serviu biscoitos de mel e
suco de fruta da estação para a servidora.
— Guardais vossa animação para a vitória,
que será certamente virá. — Ela portava um bolo de cartas no bolso, que tomou
cuidado para o anfitrião não ver. Optou pelo uso do tratamento “vós” como algo
pensado também, buscando uma conversa amigavelmente respeitosa com o homem.
Deveriam ter mais algum tempinho, pois o
cavaleiro viajante falou que passaria ao anfiteatro a fim de “meditar e louvar
a bela coragem e o real valor da princesa. Levando, agora, a memória como um de
seus talismãs”. O servidor repetia todas as vezes possíveis aqueles exatos
dizeres do amigo, pois achou bonito e respeitosamente intrigante o verso.
Pegando seu eterno fervor, naquele dia bem mais elevado, não foi difícil a
servidora se beneficiar daquilo, pondo então o baralho à mesa. Amigavelmente o
convidou para uma única partida, e fizera questão de enfatizar “única”, pois
não visavam demorar.
E assim, lá se foram uma, duas, três,
quatro rodadas... Déhla venceu a primeira partida; ele ávido por derrotar uma
sua superior, permitiu-se jogar outra. Tendenciosamente, tinha levado para seu
lar um passatempo rápido, mas o preferido do subordinado...
— Pois bem, aqui estou. Finalmente, no
limiar destas montanhas.
O cavaleiro via à frente uma escada de
madeira, com uma plataforma feita do mesmo material, que corria para a direita
do observador. Ainda que o Sol já iluminasse a área, os seus raios eram
abafados pela imponência da elevação. Assim, algumas mariposas ainda voavam,
como sombras tardias da noite, atraídas por um fraco fogo que crepitava em uma
misteriosa fogueira. O lugar onde ele estava era alagado, e se colocava sobre
um também passadiço de lenho, interligado ao esconderijo por curtos degraus. À
sua esquerda, uma parede exibia curiosos rabiscos compridos e circulares, e seu
semblante de explorador se tornava circunspecto e decidido. O que poderia
encontrar ali?
Para a jornada, armou-se de tudo o que
achava que fosse necessitar: carregava tantas curas rápidas para adversidades
quaisquer e certeiras faquinhas de arremesso quanto seus bolsos podiam
equilibradamente suportar, respeitou valiosos momentos de descanso em uma cama
quentinha e relaxou em necessários banhos, e determinou para si mesmo um
treinamento intensivo de oito dias; por um capricho de escolha pessoal. Optou
por trocar sua lança comum de viagem por uma alabarda, que apesar de exigir
mais destreza e força, era mais versátil e daria conta de armadilhas e
adversidades de portes variados. Conservou seu triangular escudo, dourado a
combinar e a equilibrar com a arma alongada, e partiu confiante e atento.
Subiu tranquilamente o primeiro obstáculo
e correu célere até o segundo. Alcançando-o, viu seu primeiro obstáculo vivo:
um filhote de polvo típico daquela região, pequeno, e com seus tentáculos
úmidos emaranhados, como uma massa única e compacta. Não fora difícil
derrotá-lo, e logo galgou mais um lance, dessa vez fazendo um semicírculo e
indo para sua esquerda. Heras pendentes o acompanhavam, anunciando a entrada da
gruta!
Passando por um curto corredor sustentado
por colunas de madeira, avistou um interior aberto e com uma atrativa coloração
verde provinda de cristais. Viu um curioso escadote, que estava colocado de
lado, ao redor de um começar de arquitetura maciça de pedra. Executando
cuidadosamente novo movimento para a mesma direção, deparou-se com uma
solitária figura portando um saco às costas cheio de pedras, assemelhando-se a
um trabalhador que mecanicamente fazia a ação de extrair minério de uma das
paredes do local. O tal servidor poderia ser boa pessoa, ali a executar de
forma simplória seu ofício, ou talvez estivesse lá disfarçado de uma, o que o
transformaria em inimigo. Uma vez que tais áreas já estavam há muito
desabitadas, não demorou para chegar à conclusão óbvia, e o intruso
desferiu-lhe um golpe certeiro; pois, subindo até o próximo patamar, a ameaça
poderia segui-lo.
Esquerda e pequeno túnel novamente, o
característico e belo brilho verde perpetuava-se à área, porém, em quantidade
menor comparada ao caminho anterior. Avançando com cautela, achou melhor ir
tangenciando as paredes, pois o lugar escondido era perfeito para uma
emboscada. Pelas graças e sortes da batalha, escolhera o lado mais apropriado,
e viu uma criaturinha diminuta à espreita, com sua lâmina em constante aviso
para que ninguém se aproximasse. Focalizou bem, e aproveitando a oportunidade,
o cavaleiro atacou.
Finalizado, andou com cuidado, pois os
pontos de luz agora poderiam não ser tão somente “atrações inofensivas”. Teve o
cuidado de não usar sua lanterna, que carregava consigo sempre que ia explorar
ambientes escuros, e confiou em seus sentidos de caçador, porém de olhos
abertos.
“Pof!” Embora se movesse com extrema
presteza, pisou onde não deveria. Seus pés, saltando para trás por reflexo,
delatavam três bolhinhas que, ao estourar ao mínimo toque, liberaram um veneno
quase mortal. Sem tempo de espera, da escuridão à frente pularam outros dois
sons diminutos a cortar o ar. Eram mais duas da mesma ameaça.
— Achais mesmo que sois páreos para mim?
Patético... — O furtivo e iminente perigo não abalou o homem, e, guardando seu
escudo, sua mão se incendiava como daquela vez à sala do trono. Uma ilusão de
cabeça draconiana foi projetada logo acima de seu pescoço, e um lança chamas
bastou para fazer as ameaças caírem. O fogo também iluminou por alguns segundos
a galeria, revelando novas armadilhas com toxinas, além de variadas pedras para
fortalecimento de armas ao redor do cenário. Caso o próprio rei e o destino
bondosamente o concedessem, ele retornaria lá com certeza. Por agora estava em
missão, e não desejava ser bajulado pela ganância.
Um outro ser diminuto sorrateiramente foi
ao encontro dele, pelas costas. Mas, como se o desafiante fosse um animal,
acertou o alvo sem que fosse preciso ver. Curou-se com calma e virou, seguindo
pela direita. Enxergou uma espécie de elevador acionado por um botão no chão.
De mãos e foco sempre alertas, subiu.
Logo à frente crescia um novo túnel curto
e, tão logo o passou, observou dois inimigos também minerando o local, um de
cada lado. Outra feia criatura humanoide patrulhava o trabalho deles.
Silenciosamente, esperou que o minerador ambulante se afastasse e atraiu o mais
próximo, da direita. Era até sem graça o quão preparado estava para aquilo,
além de o alto nível de fortalecimento de sua alabarda.
Avançando um pouco mais, localizou a
saída! Mas a luz também refletia à esquerda o que muito provavelmente seria uma
nova emboscada: uma espécie de quarto sem portas, onde fortificadas madeiras
formavam a parede frontal, com fundo e laterais beneficiadas pela arquitetura
natural da caverna. Ao lado dele, à frente da referida construção, erguia-se um
altar, de mesma forma em coloração esperançosa, porém com certeza já tomado de
inimigos.
O que fazer? Podia tentar a sorte e errar
para um dos lados. Mas, mesmo que, claro, desse conta de quem viesse, a chance
de contrair veneno agora quase na linha de objetivo era alta, e não sabia
quantas ameaças teria de dar conta naquele estado.
Parou, pensou estrategicamente... e
enxergou uma solução! Um minerador, o mesmo inimigo do saco com pedras,
mecanicamente simulava seu trabalho mais adiante. Ele, ao passar pelos outros
adversários similares, cuidou de observar que os materiais carregados seriam
condutores de calor. Fazendo uma rápida estimativa de quantas rochas existiriam
no saco, acionou sua ilusão draconiana e tratou de escapar dali em seguida,
correndo para trás e com o escudo às costas, o protegendo. O impacto causou uma
grande explosão, mas não tão colossal com ele mesmo tinha temido. Com grande
parte dos adversários caídos, subiu de novo, pois sua rapidez com adrenalina o
fez reativar o ascensor, e atacou como um leão os outros. Seus pés chegaram a
vacilar como anteriormente, mas, devido à recém estratégia, o fogo já
desabilitara as possíveis armadilhas. Diversas qualidades de pedras também se
amontoavam à elevação, mas seguiu reto para o ar puro. Olhar iminente.
Foi brindado por uma privilegiada vista da
paisagem. O panorâmico horizonte à frente era lindo e, até mesmo para mentes
mais sérias e objetivas como a dele, bastante atrativo ao ponto de se desejar
tocar, e mergulhar em queda livre à copiosa natureza. Bem abaixo e incrustada
em outra montanha já bem ao norte, fazia-se uma obra monumental, que seria
magnânima e imponente, não fosse desativada em tempos de outrora.
Em virtude do sinuoso acesso, o
acampamento que montaram ali conservava ainda os seus vestígios. Logicamente,
as chuvas e as intempéries danificaram-no em grande parte, porém o viajante,
por suas habilidades de sobrevivência, conseguiu melhorar um pouco a situação,
ajudado pela força de ânimo que o invadira ao vislumbrar tão grata beleza. Os
recursos que, à solidão de lá em cima, tinham conseguido resistir eram algumas
madeiras, as quais o explorador identificou como uma fusão de braúna com
carvalho, além de uma singela fogueira que trazia uma luz de coragem e mistério
aos futuros passos da jornada.
Andando livremente, enxergou três
retangulares e pequenas lamparinas posicionadas gradualmente nas bordas da
paisagem, feitas talvez do metal fundido de antigamente; e à extrema direita
mais um elevador rudimentar, que conectava o cenário.
Permitindo-se instantes de descanso ao
redor do fogo, pensou em toda a sua odisseia até então; trazendo à memória o
suntuoso castelo, bem como o que representava a figura do rei, da princesa, de
parte de sua corte, até mesmo visões do povoado e do petulante e irritante
homenzinho. No entanto, era um alento a certeza de saber que todos continuavam
bem, e a glória por poder-se ver útil o motivava a cada brandir de arma.
Subiu e se viu imerso à mesma geografia,
com detalhes de algumas arvorezinhas e plantas, que substituiriam por assim
dizer os cristais e as sufocantes paredes do interno da gruta. Uma curta
plataforma de madeira contornava um semicírculo à direita, com uma criatura
diminuta, que também observava o horizonte.
Foi a vez de usar uma de suas faquinhas.
Mirando na escápula, atraiu o inimigo para si, pois as tábuas poderiam não ser
tão fortes àquela altura. Ele veio, irritado e com seu salto característico,
mas foi debilmente alcançado pela alabarda. Logo mais, algo novo apareceu: um
morcego peludo e com as asas abertas. Criando um ataque de vento com suas
grandes orelhas e equilíbrio de voo, visou confundir a presa. Não obstante,
defendeu-se com o escudo e, pulando controladamente, verteu dois rápidos golpes
ao ar. O animal caiu, e ele passou em seguida, tomando extremo cuidado e
tocando levemente o piso com a ponta de sua arma.
Uma escada em ângulo agudo se via agora,
permitindo acesso a um refúgio escuro em formato hexagonal. Por fortuna, o
abrigo era pequeno e apenas com uma saída à esquerda, continuando o exterior.
Lá descansavam três morcegos, mais um dormia recolhido à porta de objetivo, e o
desafiante avistou de relance mais outro, no extremo superior da “casa”. Sem
fazer muito alarde, fez sua mão brilhar novamente e desabilitou os desavisados
seres no chão, além de suas fagulhas alcançarem o vigia da passagem. Rapidamente,
o animal que estava mais ao alto já incorria em suas garras; mas escudo,
alabarda, e facas de novo, não foi difícil desabilitar. O outro ainda se
debatia à saída, e apenas um golpe certeiro deu conta do recado. Louvando por
estar pisando mais em terra firme, e prosseguiu viagem.
Passou por um local ermo e estreito,
porém, sem armadilhas nem ameaças. À esquerda existia uma escada que corria
para baixo, e à frente outra que ia para cima. Poderia descer e desbravar o que
havia lá embaixo, por sua conta e risco. Mas ponderou, abstendo-se de uma leve
pontada de curiosidade, e não fez barulho até começar a seguinte subida. Mesmo
se ali existissem monstros, deveriam ser só novos morcegos ou outros
mineradores, pois o acesso era exíguo e escondido.
Conforme galgava as atuais tábuas, um
curioso cântico fúnebre era entoado em volume baixo. Lembrou-se das histórias
da dama de companhia Rosselle, e... sentiu-se tranquilo, pois tinha se
precavido com um grande estoque de itens de cura. Em paciente estratégia, ele
esperou um instante em que a música se tornou mais densa, e fez soar um sino de
prata que carregava sempre à sua cintura. O tintilar do objeto, semelhante
àqueles usados para chamar o gado, evocou dois goblins de pedra em tonalidade
cerúlea. Eles se locomoviam livremente pelo cenário, ostentando presas afiadas
e armas estilizadas: lâminas gêmeas que lembravam ágeis foices duplas. Tinham
passado a plataforma e caminhavam por uma superfície plana, com algumas
graminhas espalhadas e borda fortificada em quadrados de pedra, contendo
estilos que pareciam se combinar aos desenhos do início da empreitada.
As evocações lhe dariam cobertura caso a
situação assim necessitasse, e, mesmo que “morressem”, retornariam para a
sagrada campana e jamais o deixariam de fato. Contando os passos, prosseguiu.
Contudo, devido à amplitude da área e à iminência de enfrentar um adversário
desconhecido, não sabia se o melhor seria ir para frente, olhando para cima, ou
se continuava se esgueirando pelas beiradas, atento aos lados.
Vestígios de atividades humanas e três
colunas à direita transmitiam sensação de certa quietude, mas, graças à
escuridão do vão interno, ele já notava o perigo. Ao começo, dois morcegos
tateavam o solo, e ele ordenou através de sinais para que seus goblins mirassem
um em cada animal e usassem seus projéteis mágicos, como os havia treinado. Com
um leve sorriso de malícia previu que o seu plano enfureceu mais duas ameaças
aladas, que vieram dos recôncavos mais inóspitos do refúgio a se juntaram aos
amigos. Ataques de garra, mordida, chute, golpes de alabarda e escudo... os
quatro enfim caíram e o suporte das evocações foi muito bem-vindo, apenas
envenenando o cavaleiro e um de seus ajudantes uma única vez, mas com tempo
necessário para se curarem quase totalmente.
Não deu tempo de recuperar em vida
totalmente, pois o então presságio maior já havia os identificado. Uma criatura
também alada, apenas com cabeça de mulher e o resto todo deformado, já
reforçava sua triste melodia. Destramente, o cavaleiro pegou dois tampões de
ouvido, bloqueando o som que poderia fazê-lo dormir. Não preocupou com os
goblins, que já ajudavam a cercar a nova ameaça, pois entidades feitas de pedra
ofereceriam boa imunidade a sons, sobretudo os de baixa frequência.
Mas a criatura híbrida, que era a temida
harpia que muito provavelmente abreviara a peregrinação terrestre da princesa
Tamara, era ardilosa em ações e ágil em seus atos. Fez uso de uma magia tipo
malefício, em que conjurou três caveiras em um esfumaçado estilo preto e branco
no ar. As caveiras perseguiam sincronicamente os ajudantes pequenos, e três
novos morcegos trabalhavam por encurralar o cavaleiro e confundi-lo com
ataques.
Deitou-se no chão para diminuir o possível
contato dos agressores contra a sua pele, enquanto os expulsava com o escudo e
rápidos chutes. Porém, as garras de dois daqueles seres eram igualmente
rápidas, e cortavam sua carne como aves de rapina.
Uma das caveiras conjuradas mudou de
repente de direção e incorria ao herói a fim de abatê-lo. Via o perigo, mas
considerou mais válido o feitiço ter mudado de foco. Pegando impulso com os
braços, em um movimento de abdominal levantou-se depressa, e rolou para o lado
com a destreza de campeão. Encaixou, também invejavelmente, cinco de suas
faquinhas nas almofadas circulares entre suas falanges, como se tais áreas
macias fossem feitas para segurar o aço. Arremessou-as ao léu como se fossem
pássaros, e dois de seus bicos foram de encontro à caveira, desmaterializando-a
como mágica.
Aproveitando, no entanto, os outros três
projéteis que dançavam pelo ar, a harpia e os remanescentes adversários bateram
suas asas em uníssono, gerando um pequeno tornado. A deturpação não apenas
ampliou o caos, mas ainda deu mais aleatoriedade aos errares das facas.
Se até o presente momento confiava mais em
sua sagacidade e força bruta, aprendera agora a valorizar as ajudas e,
principalmente, seu escudo. Foi graças a ele que conseguiu melhor se
estabilizar, cortando os ventos como quem aprende uma estratégia nova.
Os mini-feitiços dos goblins também
auxiliaram na dança, enquanto coloriam de azul o interior do vórtice. O brilho
era grande, e ainda foi incrementado pelas partes metálicas da antiga
estratégia, que, evoluindo-se de pássaros para singelos anjos, pareciam
juntar-se à exuberante natureza.
O espetáculo era lindo, e ocasionou certas
lembranças ao herói. Porém, um segundo depois retornou seus pensamentos à
batalha, pois aquele artístico corpo de baile encantado já se mostrava mais
malicioso do que a tática de confusão dos morcegos. Ambos os lados protegeram
seus olhos por instinto e como poderiam, e desferidas de golpes, de arranhões e
de chutes vieram de todos os lados. No entanto, somente dos animais e das
criaturas de pedra, pois o humano se conservava incólume à disputa,
desvencilhando-se dos ataques segundo o barulho dos sons, audíveis agora graças
aos tampões que voaram para longe à “estratégia” do tornado.
Mas, apesar de escutar bem as ameaças,
também sofria danos, e, controladamente, por curtos instantes permitiu-se abrir
os olhos. Primeira, segunda, terceira... na quarta vez viu o animal híbrido se
aproximar pela frente, e uma de suas facas surgir pela lateral. Com um fortuito
e preciso aparar de escudo, fez o projétil acertar uma das asas do bicho, que
perdeu a postura e foi jogado pela força contra uma parede rochosa.
A harpia voltava a entoar seu canto
triste, enquanto se debatia contra a pedra. Porém, àquelas condições, a melodia
não tinha mais a força de Hipnos, mas sim seu aspecto mais fúnebre e sombrio de
um repousar eterno. O feito, não poderia ser desfeito; e rezou mesmo estando
diante de um inimigo atroz. Curando-se, agora totalmente, virou e tirou mais
três facas de seu bolso, as quais acertaram precisamente o grupo dos três seres
noturnos.
Com o passar do tempo, a tormenta foi se
amainando, e os agressores também foram caindo, pelos esforços do explorador.
Agora, ele poderia seguir em frente, para mais uma escada e plataforma à
esquerda.
O lugar também revelava algumas pedras, e,
em constante vigilância, prestava atenção às rotas dos raios de Sol,
certificando-se de que ninguém vinha das partes menos visíveis. Chamou pelos
seus companheiros evocados, mas apenas um prontamente respondeu... Antes de seu
último bater de asas, a antiga criatura ainda mantinha o controle sobre suas
caveiras, e, encontrando-se com um dos goblins, desmaterializaram-se ambos.
— Resististe bem, companheiro. Obrigado.
Enxugou o suor da face e, com dificuldade,
buscava fôlego naquele ar rarefeito. Ele ia à frente, tendo o escudo e a
evocação pétrea como seguranças. Sempre tateando com sua arma antes de pisar,
deparou-se com um molusco, da mesma espécie pegajosa de quando iniciava a então
aventura. Achou aquilo curioso; não existiam grandes fontes de água ali.
Abaixando-se, uma investida bastou para tirá-lo do caminho, enquanto o aliado
pulou às costas do evocador e cortou com suas lâminas as asas de mais um
morcego que já os observava. À exceção do incidente, o mirante era tranquilo e
belo, com um reluzente cristal branco encrustado no canto mais próximo à outra
escada transmitindo uma falsa sensação de paz e contemplação.
Não obstante, alcançaram silenciosamente o
novo objetivo. Com o cuidado para não serem mais vistos, os olhos do cavaleiro
miraram um acampamento, este com duas tendas, e talvez mais resistente do que
os outros. Como previsto, já estava tomado de invasores.
Três inofensivos polvos, dois inusitados
morcegos, e mais duas vigilantes harpias os aguardavam para brincar àquelas
alturas. Operando em similar estratégia, o segurança de pedra lançou projéteis
ao ar, tipo estrelinhas direcionadas, que ajudaram a fincar as asas dos seres
peludos ao chão para que, com um novo salto, encontrassem a furtiva foice. Os
curiosos embrulhos, que se locomoviam deveras lentamente pelo chão, seriam
fáceis de se derrotar e o forasteiro não se preocupou com eles. Realocando seus
tampões, mirou nas criaturas híbridas, que guardavam mais um elevador à
esquerda. Com sua última faca, impossibilitou a ameaça da beirada de se mover,
arremessando o objeto contra o chão em um treinado e perfeito pulo.
As duas, juntando suas forças, clamaram
cada uma pelas três esfumaçadas caveiras, que logo se juntaram a um rápido pó
verde que a agressora do canto espalhou enquanto plainava em voo. Revides de
escudo e rolares pelas laterais foram suficientes para que o conjunto
gradativamente fosse dissipado, mas infelizmente a vítima experimentou uma das
piores sensações de todas as suas andanças: toxina de harpia, mais letal e
abrasivo do que qualquer outro status negativo do tipo.
Algo parecido com uma achatada gota
dourada brilhou ao pescoço do herói, e duas curas para veneno foram rapidamente
misturadas para criar o antídoto à substância. Ainda sob tal efeito benéfico,
sua mão se incendiou com todas as suas forças, e as incandescentes chamas do
dragão chocaram-se contra as duas adversárias, desabilitando-as por completo.
Olhando para o lado, foi sua vez de dar
suporte a seu amigo cerúleo, que, apesar de eficaz resultado, não fora
eficiente, pois, por um arranhão ao corpo pétreo o fizera cair com o tempo. No
entanto, não se deu ao luxo de parar, e voltando às suas costas, golpeou os
solitários polvos.
Estava sozinho, e literalmente: pois o
ascensor, que se fazia ver como saída daquele sufoco, tinha-se desfeito e
queimado junto às pobres agressoras, minutos atrás. Lembrou-se do acaso à
intercessão da gruta, e agora era ele quem sofria os efeitos de sua própria
estratégia. Permaneceu um tempo ali meio triste e sem ânimo, recordando-se da
música melancólica dos pássaros.
Observou tudo ao seu redor: as gramas em
combinação de tons verdes e amarelos, os arbustos ora com insipientes frutos
ora sem, e o chão meio laranja de terra, dessa vez mais firme e agradável ao
andar descalço.
Repetindo a rápida cerimônia feita para a
primeira harpia, foi forçado a pegar algumas das presas e garras dos inimigos
pelo cenário. Com o auxílio de cordas, fez rudimentares utensílios com pontas
afiadas. Olhou para cima, e estimou a altura da parede de pedra ao redor do
antigo elevador, e com a destreza de um gato agarrou-se às saliências das
rochas, em árduo ofício de escalada.
O seu treinamento foi o seu guia, e antes
de o astro rei encontrar seu ápice aos céus, o cavaleiro chegou ao topo. Como
se a natureza o estivesse esperando, vislumbrou o fogo de uma nova e misteriosa
fogueira ao lado, quase à borda. E, mais adiante, uma colossal entrada para uma
outra caverna, dessa vez selada com uma espécie de fumaça amarela. Os barulhos
que lá se ouviam, já sabia bem do que se tratavam... Teve o tempo necessário
para descanso; e depois, enfim, partiu para reclamar novo título.
Ameaçou tocar a parede, e a barreira
magicamente se desfez por completo. Estava no covil do wyrm, o último grande
obstáculo até então. Criteriosamente, enquanto esperava a criatura dracônica se
aproximar, evocou dois esqueletos armados de flecha e lança, que, igualmente
aos goblins não morreriam por completo ali, além de a estratégia de poderem
reviver à mesma batalha caso o inimigo se esquecesse de seus ossos uma vez
desabilitados pelo chão, permitindo o tempo para se agruparem novamente.
A ameaça foi serpenteando para frente,
espalhando os filetes de água que se destilavam por fendas ao cenário. O
cavaleiro já rolava para a direita, e o adversário se aproximava, fazendo
demolir pequenas arcos de pedra que se viam curiosamente ao redor de ambos. Um
caminho de fogo foi formado entre eles, mas o herói habilmente se desvencilhou,
por ainda estarem um pouco distantes. Aproximando-se mais, outras lavas já
desciam a boca do animal, as quais o desafiante de mesma forma rolou, dessa vez
indo para a direita.
Aparentemente, não foi uma boa ideia
evocar os esqueletos: poderiam ser de excelente ajuda se o dragão sem asas se
fixasse somente naquele alvo apenas, mas o evocador, por algum descuido ou
adrenalina momentânea, não se ligara que a dupla tinha fraqueza ao elemento
fogo. Quisera fosse diferente, mas não dava para se lamentar por ora... Ambos,
a gigante fera e o ignóbil humano, olhavam-se face a face.
O pescoço da fera se encandecia novamente,
e o combatente se agachou, já incorrendo com a arma à direita. A mão esquerda
do animal, que parecia se combinar perfeitamente à uma arma serrilhada de
escamas que levava consigo, também visou ferir o homem, mas seu escudo
perspicazmente defendeu o golpe. Aproveitando uma oportunidade, mirou às partes
lisas do bicho e a estratégia foi eficaz, fazendo o agressor destilar novas
chamas, porém em enfurecida direção contrária. Tendo mais outra sorte, percebeu
que a “cobra” levantara novamente a sua cabeça, e a arma do homem novamente fez
um bom trabalho.
Estava em vantagem, e ele e sua evocação
corriam para o objetivo. No entanto, apenas um dos esqueletos, pois o outro já
fora sucumbido, sem chance para ressurgir. O amigo até incutiu o animal com sua
longa e curta arma, mas tomava dano no curso do caminho de magma. Padeceu por
completo, após pesada investida ao chão que a fera executou, mas com tempo
necessário para que o evocador também a causasse novo dano. Águas, fogo, e
algumas plantas se espalharam; pedras rolaram e arquiteturas da gruta caíram, mas
o cavaleiro mantinha sua resiliência, olhando friamente o cenário.
Tentou agredir a criatura mais outra vez,
porém foi expulso por uma bola de fogo. Resguardava-se em um arco de pedra, mas
rapidamente teve de escapar dali, pois o dragão que rastejava já batia com sua
arma em posição ofensiva. Tão logo o resultado, pulou pra trás, mas sem tempo
hábil para se defender, sofreu um dano da espada escamosa. O wyrm expeliu fogo
rodando a amedrontadora cabeça, mas seu oponente correu para o lado, passando
embaixo da grande figura. Ganhara, com isso, boa distância; mas foi a vez de a
fera rodar com sua arma, alcançando boa amplitude e quase ferindo o homem, não
fosse o aço de seu escudo que o protegera.
Verteu mais um golpe de alabarda, e o
animal tentou acertá-lo com a espada mais outra vez; que novamente não foi tão
eficaz por conta do escudo. Bola de fogo e outra rolada para o lado, o padrão
das estratégias parecia uma dança, que em um rigor sombrio, ditava o ritmo e os
azares da batalha.
A criatura arremessou seu pesado corpo
novamente contra o chão, e, juntamente com as fumaças e pequenos terremotos, o
cavaleiro pulou. Circulando a área, desvencilhava-se do magma crepitante, e
desferiu-lhe novo ataque. Contudo, daquela vez o bicho andou e sua cauda
funcionou como arma.
O desafiante usou sua primeira cura de
vida da atual incursão, e assim ficou surpreso: tinha melhorado e postura e
destreza, estando, ainda que cansado, apto a seu ponto para tal confronto.
Escapou de outra bola de fogo, enquanto a
cobra já levantava novamente mão ímpia contra sua pequena figura. Porém, ao
fazer o movimento de retorno com a arma, o outro não se ateve e tomou dano.
Defendendo-se, viu o bicho se levantar e adquirir uma forma bípede, ao mesmo
tempo em que acrescia a caverna com suas baforadas infernais.
Embaixo, agrediu com dois destros golpes a
barriga do animal, que, apesar de níveis acima do habitual, estava por assim
dizer a mostra e sem resistência. Sua pesada e curva arma, que agora estava
flamejante, foi de encontro ao herói, o qual em louvada sincronia rolou para a
diagonal direita. Uma grande pilastra no centro, que ajudava a sustentar toda a
caverna, ofereceu uma pronta proteção a um lança chamas, e rolando dessa vez
para a esquerda, o cavaleiro saltava as chamas como se fossem inofensivos projéteis.
Com o gigante aproximando-se, ficou com
medo de tomar dano pelo solo ainda em amarelo-fogo, mas o magma já tinha se
esfriado, e agora o humano, mudando de direção, confundia a fera.
Ela ameaçou com um sorriso que ostentava
toda a sua arcada dentária, e em um golpe reto de espada, agrediu o desafiante.
Este revidou em ataque igualmente feroz, mas não calculando bem a distância,
errou a investida. Calores e incandescências varreram o cenário, contudo ele se
protegia atrás da grande coluna.
Gastou mais uma cura, e defendeu-se de uma
tática giratória do agressor. Os ânimos se exaltando pela batalha, aplicou dois
golpes em sequência, que, infelizmente, não deram tempo de o cavaleiro se
defender. Tentou agredir a criatura, mas a visão lhe atrapalhava.
Encurralando-se, curou-se mais uma vez...
Escudo em punho, escapou, e causou mais
dano à fera. Mas ela não pareceu se abalar e tirou novos pontos do herói,
fazendo-o cair e rapidamente proteger-se com podia.
Porém, não deu tempo... novamente... E a
cena, que parecia já conter de início a vitória do explorador, parecia ter
virado como as sortes dos ventos exteriores. O wyrm estava bastante preparado,
mas o bravo viajante era sobremaneira capaz. Mais duas curas rápidas foram
gastas, e ambos seguiam em suas verdades.
O magma escorria novamente pelo chão, e o
cavaleiro alçou sua longa alabarda aos céus, como se estivesse a fazer uma
espécie de ritual. Antes disso, estrategicamente tomou um elixir, mistura que o
concedia maior poder de ataque e resistência. Andou para frente, mas pela
primeira vez não se ateve para o fogo, e seus pés reclamaram pelas brasas.
Levando um tempo para se recuperar, o oportunista não lhe deu trégua, e o
valente guerreiro achou que era a hora de tomar sua penúltima cura.
Cuspe de fogo à direita, ele correu pra
esquerda. O monstro rodou em seu próprio eixo, e o humano conseguiu subir mais
danos à criatura. Não obstante, pelo impacto do golpe selvagem o cavaleiro
também sofreu considerável dano. Restaurou-se como presságio, e se posicionou
embaixo para desferi-lo mais em três ataques. Com um redobrado cuidado para,
agora, não pisar no fogo, rolava. Mas, contudo, seus movimentos já eram
frenéticos.
Agachou-se para não levar um lança chamas
bem à frente, e seguiu avistando o que poderia ser a vitória. No entanto,
abaixara também a guarda, e, com mais um rodopiar do bicho, encontravam-se
frente a frente, medindo forças. Rolando para um ponto cego do animal, investiu
certeiramente à sua barriga.
A criatura dracônica, grande ameaça do
reino e vivo óbice aos sustentos do povoado, caiu. Mas, por conseguinte, em
eterno valor, o outro lado também encontrou repouso; em épico combate que
ficaria à memória daquelas terras, junto à saga de Tamara.
v
Os filetes de água continuavam à fluidez,
a resistente vegetação rasteira persistia ao cenário como se tivesse vida e
fosse capaz de andar igual pessoas normais, a paz na gruta reinava finalmente;
e o silêncio era absoluto. Em contraste à agradável cena, o reptiliano corpo do
Wyrm de Magma, espécime misteriosamente intrusa na região, descansava lá com os
quatro apoios estendidos e estatelados sobre as pedras frias. Ao lado, o
cavaleiro, lenda que seria entoada em alto e bom som por, talvez, uma canção inventada
pela figura do antigo homenzinho petulante, também repousava solitariamente
ali, apenas tendo a alabarda e o escudo como companhias.
Adversidade sim... porém o trabalho já
tinha sido liberado ao povo que tanto esperava, lá embaixo. Ao se ausentar para
a missão, o herói precisava inevitavelmente passar perto de certas casas de
aldeões, pois a trilha até seu objetivo não permitia tantas alternativas. Mesmo
que presasse pelo sigilo, e desgostando de fama ou da atenção de diversos
olhares para si, fez o tal percurso, cumprimentando aqueles que acordavam cedo
e lhe acenavam. Agora, o caminho estava reaberto e sem monstros; mas como lá poderiam
voltar, se não sabiam do fato e muito menos do que acontecera acima de suas
cabeças? Quem iria buscar o eterno e bom combatente das montanhas?
— ...Êpa. Ásirus! Vamos com calma. O que
está acontecendo com você?
Depois do jogo de cartas interminável, o
subordinado da alcaide Déhla já rumava para, finalmente, ultrapassar seus
limites de sua casa e ir desbravar a paisagem com o amigo. No entanto, tinha a
superior ao seu encalço, que ainda empregava sabiamente o pronome de tratamento
inadequado para continuar em uma formalidade não necessária. Em muito caminhar,
contou-lhe uma desculpa e tiveram de se despedir. O falante homem ficou só, mas
por curto tempo; pois o cavalo do forasteiro apareceu em uma linha curta do
trajeto, “inviabilizando” a passagem.
Encontrando graça àquilo, pois, segundo o
seu entendimento, o ágil companheiro teria lá aparecido porque ele próprio
demonstrara valor em seus pensamentos e atitudes, subiu à montaria sem demora.
O cavalo estava pronto para mais uma aventura, com uma sela de couro
atravessada, de bordas altas e reforçada com ferro e outros metais, para maior
estabilidade. Colocou, nos espaços ao lado, suas armas escolhidas e outros
materiais que requereriam à incursão, como um resto do suco fresco e mais três
dos biscoitinhos.
O passeio foi tranquilo e sem perigos. O
percurso elevava-se gradualmente, mas não era íngreme àquele começo de viagem.
Seguiriam em paz, não fosse o atual explorador a falar com o animal, às vezes,
coisas como: “Passear de cavalo por aqui é muito bom”, ou “Já vieste a estas
pastagens, companheiro”?
No entanto, quando se encontravam bem no
meio do caminho, o animal relinchou do nada e um círculo de cor cerúlea
apareceu, quase desequilibrado o valente homem. Fios dourados cresciam ao
redor, recolorindo em tons de cinza o ambiente que o tangenciava. O interior em
brilhante paleta de azul continuava nos mesmos fundos e contornos naturais de
antes.
A fim de brincar mais com o desavisado
viajante, Ásirus foi de galope à pintura. Com suas mãos bem firmes a rédea, o
então cavaleiro fechou os olhos ao executarem a ação, e os reabriu somente
quando já caminhavam mais tranquilos. Observou que tudo ao redor estava em
consonância com as mágicas cores, e, enxergou o lugar, como se algum dia na
vida já tivesse atravessado o reino, com as banais e normais paisagens
características de um contexto como aquele.
Tudo era lindo! As terras a seus pés, a
grama que cortava e ainda era vasta ao horizonte, as árvores mais além e a
cordilheira ao fundo... Tudo estava lá no seu mais perfeito lugar, embora de
coloração azulada como se ostentassem uma viva armadura feita da água que caía
da nascente lá de cima.
Preso à antiga prisão, o real cavaleiro,
de fato, jamais teria levado em consideração o tal plano. Mas, tendo em vista a
petulância e até uma amizade forçada, cedeu. Ambos se encontravam, à atual
cena, no batizado “Mundo Cerúleo”; local que se assemelhava ao plano dos
humanos e pessoas comuns, porém isolado de outros seres, permitindo a solidão à
entidade que lá teria acessado. Encontrou Ásirus pastando por lá certa vez, e a
história tratou de aproximá-los, tornando-os companheiros em muitas aventuras e
adversidades.
— Amigo! Percalços percorremos para aqui
estarmos. Mas é grande a alegria saudável que me invade ao contemplar a
serenidade do lugar! — E, o petulante homenzinho, agora com mais traquejo e
segurança ao cavalo emprestado, atravessava as paredes rochosas da grande
caverna circular. O tal destinatário da mensagem estava sentado, em concentrada
posição de flor de lótus, meditando sob um calmo filete de água.
O homem abriu os olhos, e também se
aprazia ao ver a figura do servidor, como uma atípica salvação para si próprio.
Calmamente, levantou-se, dessa vez sorrindo feliz, e foi ao encontro do
homenzinho, que debilmente já chorava de emoção.
A achatada gota dourada brilhou
intensamente ao pescoço do herói, quando este, horas antes, tinha realizado a
façanha de expulsar o wyrm daquelas terras. O objeto que portava consigo era um
talismã, carinhosa e cuidadosamente concebido pela rainha Ellene, a fim de
manter o coração da jovem Tamara constantemente a pulsar, desde que não fosse
dela apartado dito ornamento. A dádiva funcionaria como um remédio,
proporcionando um gradual e engenhoso alívio para seus ferimentos.
Secretamente, a filha do rei deixara cair
o ídolo oval às calmas correntes do anfiteatro, na ocasião em que ficou
novamente a contemplar a sala, logo após o cavaleiro ter dela se ausentado,
dias atrás. Talvez fizera aquilo pois já não encontrava mais tantas cores
alegres à vida, tendo em vista o contexto, ou ainda porque não desejasse o
título da mãe, temendo a ideia de ficar trancafiada no castelo, protegida como
uma donzela em perigo. Rosselle foi quem entregou ao desafiante dita
estratégia, e ele soube bem usufruir de seus efeitos, e até mesmo
incrementá-los, a partir de sua força interna e de seu treinamento sagaz.
Poderiam, os três agora, escolher como
voltar: pela via cerúlea, caminho secreto que interligava os interstícios
conhecidos, ou segundo o costume dos meros mortais, valendo-se normalmente do
esforço para retorno ao lar. A lembrar-se de sua impaciência em ver o castelo
sem poder entrar, redimiu-se conservando o amigo à montaria, enquanto guiava
ambos pelas paragens. E, em cada mirante o homenzinho tinha uma história para
contar, em cada escuridão das grutas encontrava palavras claras e felizes.
Assim, prosseguiam.
Retornaram à tardinha ao povoado. Àquela
hora, as duas torres frontais estavam mais fortificadas, e o viajante que
caminhava a pé fez questão de passar ali, para cumprimentar aqueles servidores
como era devido. Inflou seu ego ao visualizar de novo a cena, ao passo que já
previa uma curta espera, pois agora lá chegava em posição de destaque, como um
valente e bravo salvador. A nobreza, o clero e a plebe deveriam estar em suas
orações finais, ou já adiantando afazeres rotineiros para o dia seguinte. Aguardaram,
como da primeira vez, à escadaria marrom da morada real. O então cavaleiro
alisou uma vez mais o cavalo e teve as honras de fazê-lo retornar ao seu mundo
próprio. Entraram após a permissão.
— Ora, quem a mim se aproxima? Quão grande
júbilo é revê-los, ó vós, que atravessais estas portas!
E eles contaram, às suas maneiras, a
aventura ao rei. Abreviaram os detalhes, pois o Sol já se punha, além de
sentirem fadiga pela longa jornada. Dormiram cada qual em seus aposentos, e, em
renovada manhã, já se iniciava à corte preparativos para uma festa. Ao se
diminuírem novamente as luzes da natureza, candelabros e castiçais eram acesos,
e a sala do trono enchia-se das mais finas roupas, a dançar sincronicamente.
Por todo o reino, e por todas as ruas, havia plenitude de alegria e riqueza de
alimentos.
— Esta festa não é somente para vós, ó
heróico e amigo cavaleiro...
— Sim. É igualmente como tributo à vossa
filha, Majestade. Em honra de seu legado.
E assim, terminou-se mais uma saga do
herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.
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