segunda-feira, 31 de março de 2025

Acredite, você é capaz!

 

     (...) E então o herói estava viajando. Suas andanças e conquistas o levaram a outras paisagens — destinos nunca antes pensados, mas sim muito ambicionados desde que ele tomou conhecimento dos fatos. Peregrinava por ambientes claros e escuros, várias terras lhe ampliavam os sentidos, direcionando-o em seus contornos e contextos ora atrativos ora sombrios, e adversos ocasos e perigos transformavam a jornada em algo muito mais difícil, ainda que ele ironicamente risse de seus presságios.

     Como um refúgio certo e bom para futuras conquistas, lembrava de sua mera condição mortal e revisitava, às vezes não querendo muito ou achando que era perda de tempo, o já distante reino guardado pelas montanhas. Ao chegar, sempre persistia em sua postura reservada, privando-se por falar somente o necessário e indo direto para a sala do trono, onde o rei usualmente teria de ficar. Uma vez confirmado o rigor e o respeito para com o monarca, o convidado rumava em direção aos seus aposentos cedidos, às vezes passando pelos jardins e anfiteatro, ou descendo às masmorras, a fim de cumprimentar os guardas e relembrar com o ego inflado daquela vez.

     —... Nobre sem nome... — O soberano optou por continuar na formalidade requerida, escolhendo uma nova alcunha para o seu visitante, um epíteto menor e com sonoridades parecidas. Já era final de inverno, mas ainda fazia frio. — Conheceis acerca de vontades, e as vossas e as minhas são louváveis, ambas em suas particulares tramas. Ao derrotar o wyrm, a vida por aqui pôde seguir seu fluxo como outrora víamos: a natureza voltou a prosperar, os trabalhadores retornaram a seus afazeres, e todo o reino reconquistou a paz, longe de confrontos tolos e de monstros que surgiram não sabemos de onde. Estávamos felizes! E ainda é esse o sentimento que paira sobre nossas cabeças. Mas, a humanidade sempre almeja mais, é claro... — Novamente, o amigo iniciava mais um longo discurso, carregado de floreios desnecessários e encruzilhadas que nada mais faziam senão adiar o inevitável. Porém desta vez, graças aos Deuses, não olhou através da janela e pôs de uma vez os seus olhos fixos ao herói. — Tal qual um rato sorrateiro, que facilmente passaria despercebido, fugiu de minha proteção e se dissolveu como um líquido viscoso de meus domínios. Pode ter ido a seu encalço, talvez almejando uma vida mais emocionante e movimentada. Ou ainda, assim que atravessou estas fronteiras ou mais além, os azares da viajem o sucumbiram... Sabeis de quem falo, eu suponho.

     Sim, o cavaleiro sabia. Mas... não era possível! Não! Não podia acreditar que tamanha petulância o fizera ir tão longe. De certa forma, buscou ter esperança, e talvez tenha sido para reforçar qualidades otimistas e alegres que os dois se encontraram. Mas... o mundo era cruel, e a seleção natural não era para amadores... Apesar dos pesares, manteve uma face impassível e incólume perante o rei. Naquela tarde, não caminhou por outros ares do castelo. Foi direto a seu quarto para fazer suas orações.

 

v   

 

     (...) E então, ele admirava novamente a academia. Mas não mais como algo inatingível e distante, ousando abandonar a simples observação de seus encantos de fora e finalmente se aproximando deles. Era bom e tranquilo reimaginar suas sinuosas curvas e meandros desde uma vista panorâmica, mas o momento agora pedia mais, acreditava ele.

     Agora a comtemplava tendo já passada aquela ponte, parado por uma espécie de porta à frente. A passagem era feita em arco e ficava sempre aberta, como se convidasse todos ao seu ingresso. Não obstante, muito antes daqueles tempos sombrios, e talvez como um presságio do sobrenatural que viria no futuro, a entrada foi selada por mágica, e somente os possuidores de determinado item teriam a graça de entrar à construção. Era uma linda visão... Sua casa, do jeitinho que a deixara!

     — Chave... chave... Onde será que está essa chave?

     O conhecimento arcano que bloqueava o caminho fora simbolizado em um mundano e comum objeto, talvez para não ser identificado facilmente. Mas aquela não era a única e copiosa dádiva que o lar ocultava por entre suas paredes. E... achou deveras interessante e inteligente de sua parte ele mesmo fazer uso do adjetivo “copiosa”, pois como em cópia a tal fortaleza se mostrava para todos, com a ressalva de estar em proporção de 1 X 1, ou seja, cada e única entidade via uma única e só academia, sendo que todas coexistiriam em harmonia, incrivelmente no mesmíssimo e pacato lugar, formando e moldando o grande e dificilmente ornado empório do saber. A redundância de termos até chegou a incomodar um pouco, mas optou por não economizar nas elaboradas e bifurcadas escolhas lexicais. Assim como verdadeira ode, aquele era seu momento... E sentiu vontade de cantar.

     Mas não o fez. As palavras antigas e os ensinamentos do cavaleiro eram claros: “mais objetividade, por favor! Sem desvios bobos!” Como se fossem armas invisíveis, o homem se protegeu. Seguiu seu caminho. Mas onde estava a tal chave?! Calou-se, e descansou em posição meditativa.

     Quantas mais seriam as magias — anos-luz e ocultas aos magnânimos e fortes mortais — que se encerrariam às paredes dos raros pedrilhantes? Quantas pessoas e transeuntes já haviam passado, e quantas outras se esgueirariam outroramente, por entre os difíceis muros e os seus obstáculos mágicos? Isto é, a graça de entrar abençoaria a todos — todos que trouxessem a chave, é claro — mas apenas as mentes mais persistentes e... menos rígidas e chatas... alcançariam a proeza de desvendar o segredo de uma magia ou feitiço sequer.

     — Ha-ha! Somos detentores de um valor, o qual nem todos saberiam a profundidade de seus mistérios. — Ele ficou pensando no que as pessoas “normais” poderiam fazer se possuíssem ditos conhecimentos, e em como o mundo iria mudar se todos fossem magos, sem o devido estudo e respeito ao equilíbrio e à vida. Levantou-se depressa. — Mas, basta de pensar por hoje! Palavras são legais e podemos jogar com elas, repetindo-as, criando ou visualizando novas, ou ainda como em sinônimo. E é daí onde vivem as frases e textos! Mas, usando esse mesmo advérbio de lugar, onde está essa chave? Pelo amor de Marika...

     Mas aquelas... não passavam de perguntas retóricas, pois ele suspeitava desde o início sobre a posição do “oculto” tesouro. Tinha uma vã esperança de que... imerso a outros pensamentos, e inclusive louvando sua casa com palavras rebuscadas... elas poderiam se transformar em feitiço e mudar o tal objeto de lugar, trazendo-o mais para perto, uma vez que ele desejava muito a coisa. Mas, “não se pode criar conhecimentos do nada. Mesmo aqueles os quais trabalhamos, alheios e invisíveis a olhos mortais, necessitam ciência...” frases similares a essas difundiam-se entre seus sábios, que as repetiam e as murmuravam em juízo perfeito ou até mesmo mecanicamente como em transe pelas vielas e curvas da construção. Ele... também as murmurou, enquanto seguia viagem.

     Temerosamente, mas ainda assim confiante de que daquela vez fosse dar certo, desceu uns níveis da ponte. Olhou bem a retaguarda e certificou-se que não estava sendo seguido. Embora, de certa forma, enxergasse familiaridade à região, aquilo fora há muito tempo; e já se atentava para os perigos e inimigos novos que ali com certeza teriam surgido, de um lado, pelos tempos “de poucos amigos” que todos teriam agora de lidar, e do outro, graças à confluência mágica e as rotas que se sobrepunham desde o além.

     — Ora vamos. Coragem, homem! ...Será que ele já passou por aqui? — Ele dava leves batidinhas na face e falava alto consigo mesmo a fim de manter a calma. Lembrando-se dos escassos treinamentos e conselhos que, insistentemente, ele conseguia arrancar de seu único conhecido cavaleiro, encontrou uma brechinha e saiu se esgueirando pela lateral; pois piores obstáculos talvez o estivessem esperando ao sul... ou seria ao norte? Ah... não sei. A essa hora já nem sei mais os pontos da rosa...

     O... objeto estaria lá, de fácil acesso... ao alcance de seus olhos; não era preciso subir alturas altas... nem descer em baixas depressões como seu destro e viril amigo corajoso. Mas... ainda que o objeto estivesse lá... bonitão, inerte, e no seu “oculto” lugar... era o objetivo à sua frente que seria difícil. Relativamente fácil sim, é claro, para o cavaleiro; mas uma grande dificuldade para o pobre homem. Ainda mais, pelo seu tamanho...

     — ... Mas... você sabe onde está. Já ele, não. E pare de se comparar! Você consegue. — Sem ninguém para motivá-lo, ele mesmo fazia esse trabalho. Em primeira instância, lógico que pensou naquilo e se auto menosprezou, mas já sem poder voltar atrás e ouvindo agora a respiração quieta e adormecida do dragão, apegou-se no interessante jeito em que construía frases à sua cabeça... e depois, inclusive em sua própria origem, pois era também um membro da academia, deveras!

     Caso tivesse o eterno e solitário viajante realmente passado por ali, poderia comparar as duas feras. O homenzinho petulante, que a essa altura já estava lá de corpo e alma, mas sem a possível e indispensável ajuda do cavalo do herói para a “luta”, poderia fazer não se sabia o quê com aquela história, e não se mostrou digno de saber das memórias que o sigiloso amigo relatava ao rei diante do fogo.

     Mas aquele dragão seria relativamente fácil para quem já derrotara a fera do lago em ruínas. Ambas teriam ainda escamas e proteção o bastante para um voo ágil e certo, porém a atual criatura parecia um pouco mais esguia, e apesar de cuspir magia ao invés de fogo, o inusitado ataque possuía um interessante brilho azul e poderia ser aparentemente menos nocivo do que as abrasantes chamas que se alastrariam de qualquer animal “normal”. E... é claro que o homenzinho petulante se punha a pensar se a ameaça era real, se voara até aquelas terras graças aos acasos antigos, ou ainda se fora criatura pelos magos e mestres da própria academia, não se passando então de mais uma prova a qual desafiantes tinham de passar a fim de adquirir os conhecimentos misteriosos.

     — Caso seja a opção ‘c’, de correta e certa, a hipótese de que o dragão não existe... É fácil eu...

     "GRRRHHHrrrhh... KHHRRRhh..." O quão mais perto da fera se colocava, os roncos e barulhos guturais eram amplificados pelo medo e pela insegurança que sentia. E, se de fato estivesse os escutando, então sim, era real. A hipótese que ele próprio elaborara com tanta esperança e convicção havia se dissipado.

     "GRRRHHHrrrhh... KHHRRRhh. GRRR... KHHRRR?..." E ele estava parado, a meio metro do dragão adormecido (o que era já um avanço), mas ainda pensando se corria, se usava um escudo seu que não era tão bom, se jogava uma pedrinha na direção oposta e se escondia furtivamente... Coçava a cabeça como se tivesse ainda algum tempo, enquanto olhos lavanda com um toque suave de pedra lolita abriam-se lentamente ao seu lado.

     Acordou! E, quando sentiu algo pesado se levantar, apoiando-se nas asas para lhe dar mais estabilidade, com a astúcia de um ladrão correu para trás, tentando rolar e se recordar dos valiosos ensinamentos de defesa pessoal “aprendidos” com o cavaleiro.

     — Bom... Pelo menos está mais brilhante agora. Gostei dessa cor, dragão...

     Tão logo ele acordou e, curioso para ver também o que estava acontecendo, retomou uma postura ereta e majestosa. Abriu totalmente as asas para enfatizar mais a disparidade de tamanho, e voou; enquanto o pobre homem embaixo apenas rolava como podia, e para ajudar traçava mil eficazes maneiras de lidar com o perigo.

     O palco da vez era uma planície alagada, não tão densa e suja como um pântano, mas lembrava bem. Em comparações que jamais poderia ter, não era uma depressão circular que deixaria a luta (ou os passos de dança) mais cíclica (ou mais cíclicos, para concordar em gênero, número e grau). O grande animal alado poderia voar livremente, assim como estava fazendo nesse exato momento, e imbuindo de um lindo azul brilhoso todo o cenário ao redor. Caso pudesse, mas... tinha perdido a chance, o outro estaria galopando com uma outra criatura de quatro patas, ou invés de correndo e usando técnicas que nunca pensou que um dia fosse capaz.

     — Como queria eu que Ásirus estivesse aqui, como outrora um dia se mostrou. ...Mas, para. “Outrora” tem o mesmo sentido de “um dia” nessa frase... — E, mesmo correndo e correndo, a adrenalina não o barrava de fazer chatas inferências e conclusões como só ele só. E, levaria sim contínuos danos das baforadas pedrilhantes que choviam de cima; mas, com o gênio ignorante que tinha para essas coisas... as palavras meio que formaram seu maior escudo, acrescidas do seu próprio desenvolvimento pessoal, “preparado” com boa defesa mágica graças à infância na academia e depois pelas várias odes e discursos sem fim ao reino no qual se refugiara.

     “Conheço... essa voz... Deveras, bona vala mībo taobe iksos daor. Não pode ser...”

     Algo retinia em sua cabeça, mas ele somente ouvia os barulhos do ambiente externo e os ecos dos seus internos batimentos acelerados. A esguia majestade, como um verdadeiro e importante monarca, pairava no céu sobre duas patas enquanto identificava o desafiante. Seu humano coração gelou, e se deu ali mesmo por vencido. Como em cenas, viu todo o seu trabalho na academia pressioná-lo contra o chão; juntamente com... o dragão?

 

v   

 

     — Então... Já acabou? Eu posso abrir os olhos?! — Resistira bem, mas o presságio do impacto fez o homem desmaiar. A sorte se invertera: era ele agora quem estava dormindo. Apesar de não produzir ronco algum e se pôr completamente desacordado. Também em paciência, e destreza para mostrar imponência, a fera esperou acima até ele retomar os sentidos. Não demorou muito, de fato.

     “Sinto muito, mas receio que não tenhas o conhecimento necessário para me ouvir. O que... pode ser bom até. Se pudesses, deslacrarias deveras teus códices, e possivelmente contaria vantagem por estar falando com um dragão.”

     — Que... esquisito. Ainda ouço similares barulhos na cabeça. Mas... se me belisco, eu sinto o peso dos meus dedos, deveras. Será que eu... voltei talvez para o Mundo Cerúleo após tanto tempo? — E assim divagava com sua própria efígie. Desde os acontecimentos nas montanhas, seus olhos se abriram mais e estudava sobre o tal cenário “todo azulzinho” que tivera o prazer de encontrar ao lombo de Ásirus. Caso ele fosse digno de permanecer entre os mestres... poderia topar com a visão há mais tempo. Mas, se mesmo com medo conseguiu visualizar... ainda que com ajuda... tá bom. Já era válido!  

     "Grrhhmm-phh!" Imediatamente, a criatura, ainda aos céus, mudou seus tons guturais para quiçá parecerem menos ameaçadores. Refreou seu movimento de mergulho e descia ao encontro da presa com um curioso ar neutro e de ostentação. Pousou, como se já não se importasse com o “intruso”, ao seu lado e lhe acenou com a ponta de sua asa direita o pequeno recôncavo onde se escondia a tal chave. Era um bom dragão...

     De acordo com sua vaga lembrança também, o objeto podia sim, e muito bem, passar despercebido uma vez que estava inserido em um cenário tão vasto, sendo guardado por um alado animal que atrairia sempre mais o olhar de “visitantes”, seja por sua imponência ameaçadora ou por sua beleza sem igual. Junto de um punhado de pedras escuras e sem importância, ali estava caído. E... o homenzinho não acreditou quando o guardião delatava para ele a posição correta do tesouro. Ficou estagnado (como qualquer outro ficaria, isso temos de concordar), depois cambaleou..., a impaciente fera bufou e ele cambaleou mais... coçou a cabeça e olhou para os lados não acreditando mas já querendo chorar de emoção. Finalmente rumou decididamente para pegar a chave, com um orgulho de um campeão que teria cumprido um grande feito.

     — Obrigado caro e nobre Dragão! Perdoe-me, mas nem sei como agradecer... — Não sabia como nomeá-lo, deveras, e por isso fez questão de pensar no seu nome com a letra inicial maiúscula. Ambos, ser e criatura, não tinham lá tanta familiaridade e a majestade alada poderia não gostar se ele atribuísse a ela um nome que não se encaixasse ou soasse o mínimo dracônico possível. Fez a reverência como devia ser e se sentou em posição de lótus. Os seus mundanos olhos marrons estavam, ainda que mareados e receosos de mirar para a direção correta, fixos e circunspectos aos divinos portais brilhantes à frente.

     Ahh... já esperei demais. Não falais... Então já vou indo. Obrigado mais uma vez, ó grande soberano dos céus!

     Ele já estava indo, “escapando ileso” novamente como um rato sorrateiro quando... a pesada cauda do dragão bloqueou seus passos. O animal deveria estar voltado a se irritar pois “o súdito” não esperou o devido e necessário tempo à companhia de sua “proteção”. Previsivelmente de novo, tombou ao chão e seu coração parou! Mas, não demorou muito, voltou logo em seguida por algo pétreo que cutucava delicadamente suas pequenas costas.

     — Dragão, o que queres de mim? Sou pequeno para compreender vossas vontades — ele falava, mas não obtinha alguma resposta. Isso é não em palavras, mas em gestos. Sem acreditar, algo era indicado pelas asas do animal tal como antes. Isso é, algo que não era exatamente algo comum e inanimado, mas uma... outra criatura? Bem... certíssimo estava de aquele algo não estar lá previamente, muito menos fazer parte do cenário pantanoso. Era grande, não tão colossal como um dragão mas ainda assim não por menos intimidante; portava uma pétrea espada de lâminas gêmeas, com um design único e bem característico; e seu corpo esguio humanoide ostentava asas, proporcionais à sua figura e colorindo sua completa efígie de um cinza pétreo quase impenetrável. Era uma gárgula. Não bastava a real ameaça, estava diante de uma gárgula!

     ...Só, que não era mais um típico exemplar desses adversários que voam pelos céus e assombram os viajantes. E, por isso teve certeza de que a criatura não estava no cenário antes de ter adormecido. O seu corpo — sem gracinha e inteiramente de pedra —, era o que constava nos livros e imaginações férteis de uma criança que nunca saíra do conforto de seu lar. O que se punha diante do homem era sim uma escultura intimidadora de um período gótico ou vitoriano, mas mais do que isso uma evocação. Um lindo e majestoso pássaro azul. E... não parecia tão mal encarado como lhe contavam.

     O homem colocou-se de pé em um ornamental salto para trás, enquanto alisava suas vestes já amarrotadas. Agora, entendendo melhor a inusitada situação, virava o pescoço devagar para a esquerda e para a direita. Ainda não sabia em que se fixar, verdade. Se nos dois pequeninos espelhos em formato de olhos de gato, com seus atrativos e amigáveis tons de roxo e lavanda; ou se no novo guardião azul que agora se mostrava, incólume e parado ali em postura ereta com a espada apontando para baixo, possivelmente a esperar ordens de seu senhor.  

     Eis que a cauda do dragão tornou a subir, eis que o ex-integrante da academia passou celeremente, ainda duvidando se a passagem fosse se fechar, e logo mais aquela evocação o seguiu como se fossem bons amigos.

     Mas... e o sino? Se ele seria digno agora de chamar espíritos em cooperação, teria de ter o similar objeto para labores agrários igual ao que o cavaleiro ostentava por aí. Mas... parecia que o dragão tinha outros planos para ele, e o mesmo provara seu valor e respeito quando vislumbrara o Mundo Cerúleo ao lombo de Ásirus aquela vez. Na certa, o rei dos céus reconhecera suas valorosas ações, e resolvera dar crédito ao nobre humano uma vez que ambos os caminhos, e tramas do destino, segundo ele, se cruzaram novamente.

     Como num raio de magia rápida, varreram as distâncias. E o homem fora imbuído de coragem e motivação nunca antes sentidas; pois, com um brutamontes azul do lado, ainda que menor do que um bicho de pedra comum mas ainda assim fortemente capaz, não teve a menor dúvida de que conseguiria! Estavam de novo ali, agora com a chave e... graças à Marika, a ele também e ao Dragão, junto ao protetor cerúleo.

     Então, o homem introduziu a chave em um buraco de fechadura imaginário e rodou com o simplório objeto 180 graus para a direita, porque ele era canhoto; e depois voltou mais 90 graus para a esquerda, segundo ainda se lembrava do segredo. Assim executado, a parte dos dentes da chave se transformou em um cristal azul em formato de pingente, e logo no espaço maior onde sua mãozinha esquerda a segurava, dois círculos — um menor e sem decoro algum e outro maior, ostentando um acolchoamento de mesma forma azul —, formava-se delicadamente. Com o mesmo cuidado o sábio tirou a mão do objeto, e uma espécie de tridente, com uma pedrinha no centro, agora turquesa, foi materializado.

     Ele achou que a chave sumiria ao cumprir seu trabalho. Mas não, quem sumiu foi a tal gárgula, a que o homem, apesar de momentaneamente confiante, estava rezando para não o abandonar. De fato, sem ninguém, e sem saber ao certo quem o que iria encontrar, sentiu um resquício incipiente de medo. Mas... estava, sim, mais perto, e a certeza da vitória era por demais convidativa. Silenciosamente guardou a chave, mesmo que voltara ao estágio mundano poderia muito bem ser de uma utilidade necessária. Seguiu, como o que seria a destreza de um gato, mas com a sua já registrada e mais certa petulância furtiva.      

 

v   

 

     (...) O cavaleiro então, ao embarcar na nova viagem, pegou-se pensando em uma outra passagem há muito distante. Apenas uma coisa, segundo ele próprio, faria diferente caso tivesse nova oportunidade: passaria mais tempo ao convívio do reino e, embora não fosse necessário, sob a proteção do rei. Jardas se aumentavam em léguas, inimigos humanos se tornavam bestas provindas de uma imaginação sombria e até doentia, tramas e caminhos se sobrepunham aos traços e rabiscos de um destino cruel. Instantes de felicidade e fartura seriam cada vez mais escassos para alguém que escolhesse tais objetivos. Ao que parecia, cada degrau almejando o inalcançável, a cada elevação vencida que fazia ele próprio se sentir como um Deus, subir-se-iam também as provações e desafios físicos e psicológicos.

     — No entanto, não seria assim que ele veria as coisas. — Quase nunca se emocionava, e os azares e meandros das viagens pouco lhe balançavam, de fato. Contudo, ter convivido com o tal homenzinho petulante, o qual não podia acreditar que fora apenas uma memória rápida, tamanhas eram as suas odes e amolações, lhe fizeram... ... ... Foi, foi sim, foi bom para ele para baixar a sua pompa.

     Não. Não precisava daquela correria toda para os encargos os quais o próprio herói se outorgara a cumprir. Os dragões e feras aladas... eles sempre existiriam lá, e... seria um caminho neutro e “mais tranquilo de tempo” do que caso optasse por enfrentar os ladrões e os verdadeiros antagonistas de seu passado. Mas privava-se em completar a corrida de um jeito rápido e sem desvios justamente por sua particular história de vida, pois via em cada criatura as efígies daqueles salteadores, imaginando rostos e maquinações as quais não pôde enfrentar antigamente. Viajava sozinho, e se refugiava somente o necessário em paragens talvez para não se apegar às pessoas; pois tudo em sua vida era efêmero.

     “— Nobre e valoroso amigo, vossa presença aqui nestas terras enobrece o nosso nome e fortalece o porvir de meu reino. Não obstante, se minha memória não me trai, certa vez disseste: ‘nada deve ser eterno, e a vida quer de nós mudança’”. — A cena era de um desjejum na sala do trono, similares a também outras que o viajante conquistara o direito de presenciar. Mas, era sabido que não estava se recordando da passagem devido apenas à personalidade do rei, que, apesar de forte, enxergava no reservado estrangeiro sinais de um filho que nunca teve. Sua mente detinha-se àquelas cenas pois fora uma manhã em que uma outra figura foi evocada à sentença, um alguém que estava mostrando-se digno até, ainda que sob muitos e duvidosos poréns. “— É importante e bom nos manter firmes, e seguir com nossos afazeres, seja lá quais forem... Alcançastes a glória eterna, e tens meu profundo apreço e gratidão. Antes de sentires à vontade para desbravar horizontes além, desejamos dar-lhe como recordo pedras de forja mineradas e materiais diversos, alguns raros e únicos, os quais conquistamos em anteriores incursões. Não posso ainda ausentar-me livremente de meu posto, sinta-te livre para levar em missão alguns de meus homens. Aconselho-te o servidor de Alcaide Déhla, que tem se mostrado apto até e um bom servo, apesar da chatice e das histórias inventadas e intermináveis que se presta a contar. Será inteligente ir por agora, uma vez que o caminho ainda deve estar mais tranquilo.

     Não era de seu feitio viajar em companhia, mas brincar por algumas horas de membro da corte de maior prestígio e oficial de patente mais elevada teve seu lugar! Movimentou certas tropas à sua vontade e se permitiu distrair um pouco, mas... já começando a criar vínculos! No balanço geral, foi interessante o atípico desafio; eventualmente tornando-o mais capaz!

     “Perdia”, por outro lado, mais tempo rumando sozinho para as montanhas, e esperando incessantemente as conhecidas ameaças retornarem ao seu atual palco (pois renovariam as suas caras certamente após um tempo). Não lhe era comum também ater-se a escolhas lexicais, mas fizera questão de pensar sobre o verbo ‘perder’: estaria mesmo matando tempo ao incutir à paisagem e completar os mesmos desafios várias e várias vezes, ou isso era o que lhe possibilitava um invejável avanço nos sentidos, e lhe capacitava além dos meros mortais para algo maior e mais... inusitado?

     Errava, voltando ao seu status solitário, incessantemente pelos quatro cantos do mundo e achou, escondido no mais interno e escuro de dois fortes, duas metades que se uniriam e formariam uma espécie de roda achatada em coloração de barro batido, apenas com uma sutil divergência de tom e textura em um minúsculo espaço no exato centro superior. Ele não precisaria daquilo caso optasse por perseguir os ladrões que dizimaram sua vila anos atrás; mas, o mesmo Mundo Cerúleo que ratificou para o herói a posição dos antagonistas de sua infância, agora delatava que necessitava do item para completar seu determinado empenho de derrotar dragões, pois eles sim se esconderiam em vários caminhos, difíceis rotas, e extremos climas, exigindo uma constante fuga do lugar comum e estratégias que teriam sempre de ser reescritas nos meandros de sua história.

     Com isso, terras e mais terras cruzou — distâncias desertas e labirínticas, ora separadas por abismos, fortalezas e caminhos esquecidos, onde a poeira dos séculos se acumulava. Guiado apenas pelo eco de lendas há muito dispersas, avançou entre reinos devastados e campos outrora gloriosos, e enfim alcançou o seu tão aguardado objetivo: escadarias que o conduziriam ao grande elevador. Agora, em posse do item completo, o eterno viajante mais uma vez provou seu valor, erguendo-o diante das criteriosas estátuas que barravam a passagem. As sentinelas de pedra viraram, como se tivessem vida, para o medalhão, e os seus olhos adquiriam um intenso brilho vermelho, que também incidiu sobre o detalhe incrustado bem no meio do circular objeto. Fechando os olhos e sentindo gradativamente a brisa entrar pelos pulmões, imaginou naquela mesma hora ser coroado em louro por um monarca qualquer, enquanto ascendia-se até o mais alto das nuvens, em uma sagrada e prometida região com geografia protegida e cores divinas em tons de amarelo e laranja. 

     No entanto, já vislumbrara a colossal divisa desde longe, na vez em que descansou no acampamento mais alto do penhasco, logo antes de entrar na última caverna e desafiar o wyrm. Após os eventos lá de cima, desceram — ele, e, é claro... o homenzinho petulante —, espalharam a boa nova ao reino e, na noite seguinte, fez-se a grande festa. O cavaleiro, já de ânimo renovado e desta vez mais calmo e tranquilo, cordialmente não subiu mais à montanha e deixou os trabalhadores e o inteiro reino se recuperarem ao compasso de seus próprios dias.

    

v   

 

     — Sim, é linda a visão. E que bom que pude proporcionar isso para meu amigo.

     Também não era de falar sozinho, muito menos voltar nos mesmos locais que já sabia estarem vazios, ou seja, com apenas natureza, porém sem monstros e/ou itens relevantes. Mas... talvez para não se sentir tão desapontado com aquilo, optara por fazer as últimas orações ao homem lá, pois ele iria gostar de rever a panorâmica.

     Poderia usar uma conhecida estratégia e pesquisar previamente o que teria ao subir o novo rudimentar elevador, uma vez cruzado o antigo templo de batalha. Mas, corajoso e apto como buscava ser, não se valia de vantagens para perseguir os seus objetivos, e o máximo que ousou fazer foi averiguar para qual direção os antagonistas de sua história se escondiam, talvez para rumar por outro canto e abster-se de tal confronto.

     E, sem nada mais para encontrar ali, o cavaleiro deu por encerrada aquela mais nova grande aventura. Ainda pegou-se pensando no que o homenzinho otimista faria, ou pior, cantaria ao descer tranquilamente aquelas montanhas, os mesmos cenários que ele mesmo outrora já tinha percorrido, ao seu lado. Chegando ao reino já à tardinha, optou por deixar Ásirus anunciar seu então retorno triunfal. Foi um pouco humor negro a cena de o cavalo estar se avizinhando sem o cavaleiro, ainda mais relacionado aos últimos acontecimentos. Mas, ele não tinha ido para uma missão, deveras, e já era muito acostumado com aquilo. Alguns vigias no vilarejo notaram as suas petulância e ironia, mas, em respeito, dessa vez não zombaram. Deixaram-no passar.

     No mesmo dia, ao cair do que seria uma das últimas noites frias de inverno, sentiu que já era hora, e partiu. Há muito desejava também rumar para o leste, e pensou ser aquela a ocasião propícia, uma vez passados os oito dias para treinamento e descanso. Não que ele acreditasse em condições específicas, ou fosse supersticioso ao ponto de seguir dogmas e sandices alheias, mas via como interessante o “espelho” que tal algarismo representava; motivada a crença pelo dito Mundo Cerúleo, que coexistia em harmonia ao plano mortal.

     Planícies, planaltos, depressões... vales fechados por brumas e desfiladeiros abertos, que pareciam suspensos e intocáveis até mesmo pelo próprio ar. A terra, entre seus relevos mais uniformes, e a vegetação, em um esperançoso verde vívido predominante, foram se modificando aos poucos para tonalidades vermelhas e para rochosas geografias de morte e intimidação. Ao viajar desde o Leste, chegou ao oeste do novo cenário. Reafirmando o seu típico aspecto macabro, avistou áreas pantanosas e cânions que podiam bem ser leitos de rios secos. Embrenhando-se por entre fendas e passagens estreitas, pegou uma estaca de madeira que levava consigo e jogou, com todo o cuidado possível, em uma substância espeças e oleosa que corria no mesmo lugar onde seria o tal manancial. O líquido tinha a mesma aparência das terras, acrescido de uma já previsível de barro.

     A estaca, na mesma hora em que entrou em contato com o curioso fluido, deteriorou-se depressa. Riu ironicamente para si, pois já sabia o que era. As essências, pois existiam mais pela região, continham um veneno absurdamente nocivo aos humanos. Jogou apenas para ter certeza de sua sorte, enquanto lembrava dos ensinamentos de sua avó e opinava sobre o que seria. Não podia nem pensar em tocar naquelas áreas por agora.

     Mas o seu cavalo, Ásirus, poderia ter imunidade uma vez vindo de outro plano! Já as demais criaturas evocadas, que também eram provindas “do além”, poderiam ter menos resistência e estabilidade naqueles trechos, pois apenas conseguiam se juntar aos mortais em determinados momentos, o que seria mais restrito do que seu companheiro de quatro patas. A marcha de seus duros cascos somente era vetada em castelos e lugares fechados, os quais não teriam uma contínua circulação de ar. E conforme ele caminhava por ali, não se avistava tais cenários fechados; em comparação, a vastidão silenciosa dos lugares era o que pressionava e sufocava a cada ritmo o seu coração.

     O viajante, ainda que errasse para frente, pensava se não seria melhor voltar e explorar a região dourada oculta atrás do wyrm e do elevador. Mas... para subir acima das nuvens, tivera de mostrar seu valor... e graças àquele pré-requisito pôde constatar que as ameaças dali seriam mais difíceis e exigiriam mais estratégias. Optou por permanecer onde estava.

     — É, de fato. O pessoal daqui gosta de briga. — Partindo do leste da região e descendo um pouco para o Sul, chegou em uma espécie de clareira onde novos inimigos, divididos em pequenos grupos de humanos e animais. Os primeiros seriam muito provavelmente soldados, talvez um ou outro guerreiro mais brutal à paisana, e trajavam de leves a pesadas armaduras de ferro, sem qualquer adorno estilístico e único, mas algumas protegidas com cotas de malha e outros apetrechos, talvez sujos e desgastados por uma guerra sem fim. O segundo grupo era formado por cachorros de aproximadamente dois ou três metros, de pelo liso em negro, e alguns poucos com uma variante em branco. A diferença dos outros canídeos que perambulavam também pelo mundo, estes eram bípedes, com as duas patas inferiores e as duas posteriores pequenas... assustadoramente pequenas... e cada um com uma cabeça gigante e uma arcada dentária repulsiva que parecia evidenciar ainda mais as desproporções de seus corpos. Andavam meio desengonçados e atacavam arrastando suas mandíbulas ao chão.

     Já tinha presenciado aquilo quando acidentalmente quis amolar as feras para medir a sua própria destreza e a força dos novos adversários. Varria o perímetro até então sem o suporte de seu amigo quadrúpede, de forma mais tranquila, porque naqueles recôncavos esquecidos nem o líquido venenoso tocava. Contudo, quando os cães abriram as bocas, chamou Ásirus para ganhar mais agilidade. Ambos os lados levaram dano, mas a vitória logo lhe sorriu! Seguindo para o sul, outros cachorros apareciam... e fora lá que avistou o batalhão dos inimigos humanos, que junto a todo o resto do cenário não faziam nada, meio que de vigília para algo maior.

     — Bem... como diria com certeza o outro... ‘não contavam com a minha astúcia’. — Ficou um pouco desapontado, deveras, assim como quando presenciara aquela vantagem ao subir para os patamares mais elevados. Com um misto de desdém e malícia, assistia, desde um pequeno deck de madeira que estava bem e estrategicamente posicionado, aos monstros ali adiante se engalfinharem como loucos. E, já sei... o outro certamente poderia aqui filosofar que se batem uns aos outros porque são de biologias diferentes, e o ‘igual’ sempre acha que o ‘diferente’ é uma ameaça. “Cuidado! Vamos todos morrer” ... Se bem que Melina de mesma forma talvez estaria me dando similares sermões. Não sei porque me ponho tanto a pensar nele!

     Após esperar a ocasião certa para subir em uma espaçosa torre-vigia com apenas dois soltados atirando flechas desde simples bestas de madeira, fez a limpa no andar de cima, além de pegar um outro talismã que ajudaria no alcance de seus projéteis. Retornando ao convívio dos inimigos de baixo, não acreditou que ambos os grupos se atacavam por si só, em cega busca pelo alvo certo. Achou aquilo inusitado e resolveu permanecer por lá até o outro dia, ou o próximo, só para ver se o show continuava. Ouriçava os rivais com Ásirus, e depois repetia o feito de subir tranquilamente a construção. Evoluía em atributos de sobrevivência nas horas vagas.

 

v   

 

     Obedecendo a sua rígida lógica, saiu na manhã do dia 20 para... não sabia aonde. Sua curiosidade de herói nato desejava seguir para frente, desbravando um atípico e sombrio castelo erguido sobre um penhasco, atrás de uma grande ponte cinza de pedra. Foi tentado a direcionar o galope certeiro de seu cavalo para lá, mas o fechado cenário também seria povoado por aberrações... Então, absteve-se daquelas desventuras, e voltou seus passos para o noroeste, ainda que só para ver o que tinha ali.

     E seus instintos lhe fizeram... desabilitar novos inimigos e, chegar em um contorno de estrada, que dava para uma enorme fenda. Rodeado por uma paisagem de cânions e... que interessante, espécies grandes e apodrecidas de plantas, algo branco se avistava! Exibia ferimentos que contrastavam com o tom da pele, mas pelo porte grande poderia ainda ser muito resistente. Era um dragão! Uma fera que dormia, porém estava lá como guardião de algo também único, um templo em ruínas.

     Lógico que, pronto como já se sentia, não teve dúvidas. Usando ainda a vantagem do cavalo, bebeu um elixir que lhe conferira um maior poder de ataque carregado, e rumou à aventura adiante.

     Rapidamente e para fins estratégicos, comparou as características da presente criatura com as de uma outra, já há muito enfrentada. Ambos teriam mais de 20 metros de altura, e, diferindo-se um pouco das lendas de outros animais maiores ou mais serpentoides como um wyrm, ostentavam escamas menos rígidas, para moldar os seus movimentos enquanto planavam com sinistra elegância, além de possibilitar assim um cortante voo ágil. O que seria uma vantagem em um campo de batalha, poderia ser uma armadilha no atual, pois antigamente ele poderia contornar e confundir a criatura, em um cenário circular. E... ali não. Talvez não seria bom usar tal estratégia, pois pedras e algumas elevações existiam ao palco, e... do lado direito toparia com um abismo. Mas estava apto para o desafio, e usaria sim fogo contra fogo, ou melhor, garra contra garra para colocar a fera no seu lugar. 

     O bicho apenas levantava a cabeça, quando o herói mudou de direção e já corria com sua dourada lança mirando na pata esquerda do animal. Não por menos, ele rodou o corpo em um ataque com a cauda e, focalizando bem a presa, expelia de sua garganta um jato de pó grosso e vermelho com aparentemente o mesmo grau de periculosidade do veneno que abundava a região. Graças aos Deuses e à sua destreza, o cavaleiro escapou dali e se refugiou em uma rocha logo atrás, que fez a substância se espalhar em vários vértices em contato com a natural parede escura.

     — Ó, que linda visão! — E, distanciando mais um pouco com medo de respirar o gás, ainda encontrou tempo para zombar do dragão. — É... escapei. Mas que bom que essa decoração não abre... — Ele se referia à curiosa planta que estava logo à entrada da fenda, inacreditavelmente saída do solo de areia sólida. Similares ornamentos se faziam ver em outros pontos do cenário, concedendo ao ambiente um ar sombrio e sempre intimidante. Fora por pouco, mas muito bom mesmo que os “botões” não desabrochavam ao toque da poeira avermelhada.

     Maiores do que a primeira dificuldade, quando a fera batia as pesadas patas no chão, os nocivos ares irrespiráveis subiam, protegendo-a em ocasionais barreiras. O desafiante tinha de repetir a tática de correr com o cavalo + bater na criatura alada + escapar na surdina, também em companhia de Ásirus. Perdera a conta de quantas vezes fizera aquilo, entre um instante ou outro que, para agilizar, descia de sua montaria e feria a ameaça com uma grande mão dracônica, que era materializada desde seu ombro esquerdo. Conseguira tal poder após ter derrotado o wyrm da montanha, e ficava feliz com a possibilidade de usá-la na disputa. Achou mais sensato guardar o sopro de fogo, porque biologias como aquela teriam resistência ao tal elemento, além do que o calor poderia interagir com as tais flores em volta deles, e abri-las como mágica ou acabar de matá-las, exalando o aroma da substância escarlate. Sentiu medo, mas, porém, estava com seu cavalo...

     Era certo que, para o apto homem, tamanho deixara há muito de ser documento. E ele dispunha de estratégias que poderiam ser lançadas — algumas facas de arremesso, sempre aos pares, que já trabalhavam para confundir o animal. Porém, sua pele e seus ataques, de mesma forma destros, desviavam os projéteis enquanto corroíam algumas. Não obstante, o simples homem em terra lutava bravamente, confundindo e ferindo a grande ameaça dos céus.

     Cuidava do medo, pois o animal farejava o crescente e natural sentimento. Baforadas e mais baforadas de veneno, e o cavaleiro subia em rochas e errava entre as suas estreitas passagens. Sempre que subia, mirava o dragão. Tinha de estar atento! Não teria opção...

     — Obrigado, Ásirus... Excelente ajuda. Vamos continuar!? — Protegendo-se em uma escadaria natural de pedras, alisava com pose feliz e de vitória seu cavalo. Era só seguir em similar estratégia e foco!

     — Isso! Vamos! ...AaaaAAAHHHH...! — Já descia, mas... um sussurro pesado cortou o ar. Não era o som das asas do dragão, mas sim... uma única galopada em falso.

 

v   

 

     "RHHHAAAARRGHH!"

     Logo ao cair do precipício, o amigo cerúleo sumiu do nada, sem deixar vestígios. Mas, era muito para entender no momento, acordara depois de um tempo, sentindo a brisa ainda da aurora e mais perto do ardente sol daquelas terras, recolorindo o ambiente. Deitado e sem forças, só o que fez foi abrir os olhos. Abriu os olhos e viu... que voava às costas de algo largo e azul.

     (...)

     E assim, terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.

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