domingo, 26 de outubro de 2025

A primeira crônica.

 

A primeira crônica.

      — Mas que calor é esse! Será que existe vida após 3.020?

     O mês era junho. As folhas caíam... mas a temperatura não diminuía. Ao olhar para trás, o estudante percebeu que, no começo da estação, provavelmente entre os dias vinte e cinco e trinta de março, dissera similar expressão. Porém, já passava da hora de o tempo mudar... E realmente notavam-se novos ares, mas não os naturais e esperados por toda a população.

     As emergências e os impactos crescentes também castigavam todos os outros países, sem exceção. Os primeiros a captarem tais presságios foram os animais, ocasionando um fluxo migratório contínuo e desordenado para regiões atípicas do mundo. Tempos depois, algumas áreas que persistiam em permanecer geladas derretiam-se cada vez mais, reforçando as falas de especialistas e, enfim, amedrontando (ainda que por consequência direta do dinheiro e do “desmatamento natural”) até os mais poderosos e céticos. Uma vez que os recursos biológicos se espalhavam, as florestas careciam de agentes para polinizar as plantas, e, gradativamente, reduziam-se em hectares.

     Isso tudo, porém, acontecia em segundo plano, e não afetava de forma relevante e notável as camadas mais baixas e as pessoas comuns. Mas, enquanto o cenário externo se modificava, poluições na água e no ar eram percebidas a olho nu, fruto do tal derretimento das calotas polares, alterando significativamente os índices de acidez e alcalinidade dos oceanos. Devido ao esperado desenvolvimento da humanidade, não se conseguia conter o lixo nem o desperdício que tantas mãos e bocas cometiam diariamente. A Terra já sentia aqueles reflexos e respondia com enchentes e clima extremos, mas a virada do terceiro para o quarto milênio mostrou que o problema não era mais tão simples de se resolver somente não deixando papel no chão para entupir bueiros. A estratégia era boa e louvável, exigindo sim mais comprometimento, mas era humanamente impossível varrer todas as praias a catar latinhas e restos de um turismo negligente. Os oceanos choravam, e o jovem estudante engolia um seco com o futuro incerto.

     — Se ninguém fizer nada... será inútil! — Seus olhos reclamavam das luzes da tela do computador, mas ele não deixava de ler as últimas notícias. Queria terminar logo aquele artigo para seu curso de faculdade, e o antigo relógio de madeira da parede de seu quarto batia tic tac, coordenando o ritmo acelerado do pulsar de seu coração. — Não... Claro... as pessoas fazem... e sempre existiram almas que fizeram a diferença. Isso podemos ver em campanhas de conscientização e programas como “voz dos oceanos” ou “vigilantes da natureza”.

     E ele se animou, puxando pela memória o que já tinha sido feito para tentar amenizar os problemas. Em 2.098, a intensificação das mudanças climáticas e o aumento do nível do mar impulsionaram a implantação e a manutenção em larga escala de diques móveis como reforço às barragens existentes, protegendo áreas costeiras das enchentes cada vez mais frequentes. Alguns cem anos mais tarde, a biotecnologia deu novo fôlego às técnicas de plantio e reflorestamento, que juntas permitiram o cultivo de árvores geneticamente adaptadas a ambientes extremos, recuperando áreas degradadas e mitigando os efeitos do desequilíbrio ecológico. Como um projeto ambicioso, mas essencial, após décadas de pesquisas e debates éticos, foi implementado — ainda que em escala reduzida — o "Céu de Diamantes", uma tecnologia atmosférica inovadora que utilizava nanopartículas de diamante sintético para refletir a radiação solar e aliviar os impactos do aquecimento global. Todas aquelas ações, que se ampliavam e se ajustavam constantemente aos novos desafios, eram resultado da ação humana diante de um cenário crescente de dificuldades. Embora baseadas na ciência e em soluções práticas do “novo normal”, tais iniciativas acabavam por se assemelhar a feitos extraordinários, quase impossíveis e inimagináveis, diante da magnitude das forças naturais envolvidas.

     Os conhecimentos prévios do curso e os artigos lidos na tela eram, embora verdades que os meros humanos quisessem esquecer, vívidos e imponentes para todos. Aproveitou o silêncio e, já que não conseguiria dormir graças ao calor, sentou-se à mesa de madeira e buscou adiantar o trabalho. Escrever lhe relaxava, além de ser uma espécie de terapia.

     Procurando por imagens, achou na internet uma colagem que unia as contemporâneas sedes dos quatro grandes laboratórios do clima, localizadas em pontos estratégicos pelo mundo. Eram fortalezas totalmente tecnológicas e de alta engenharia, cada uma com sua arquitetura própria, a fim de refletir a identidade e os desafios climáticos da região onde estavam instaladas.

     O fogo e o calor eram estudados na Sicília, especificamente ao lado do Monte Etna. Em comparação, foi o centro de pesquisa menos oneroso para ser erguido, e grande parte de suas atividades era feita aproveitando-se a geoarquitetura ambiente, com câmaras e instalações literalmente dentro do vulcão. Seus trabalhadores e diretores não teriam, de fato, como escapar das altas temperaturas, que eram ainda mais acrescidas com o passar dos anos. Para garantir a segurança, todos os colaboradores e visitantes usavam roupas especiais, inspiradas nos trajes de brigadistas de incêndios extremos, além de máscaras modernas e respiradores portáteis. Extensas paredes de vidro cerâmico, capazes de resistir a temperaturas entre 700°C e 1.400°C, separavam com precisão os caminhos da lava e as passagens humanas. O projeto baseava-se em colunas e arcos, o que favorecia a ampliação de seus corredores, permitindo rotas rápidas de evacuação. Por fim, compridas vidraças captavam e filtravam luz solar, enquanto turbinas eólicas e painéis solares garantiam a autonomia energética.

     O laboratório do bioma aquático apresentou um desafio maior, graças à terra seca e à constante perda de recursos. Muitas seriam as opções, mas os possíveis e exorbitantes gastos, aliados à real vontade política da época, retardaram sua inauguração. Contudo, a Amazônia foi a região escolhida, dita “pulmão do mundo” ainda naquele quarto milênio, apesar de suas áreas duramente castigadas. Optou-se por instalá-lo à margem do afluente Solimões por dois motivos bem simples: devido ao seu encontro com as águas escuras do Rio Negro, conservando seu persistente volume; e, o que era mais preocupante, por sua atual aparência, agora mais homogênea e com o pH alterado. Os dois amigos aquáticos ainda se abraçavam, e supercomputadores confirmavam a esperança por conseguirem captar resquícios que os humanos não poderiam notar, mas a característica coloração se tornava clara conforme a decomposição liberava mais carbono na atmosfera em vez de dissolver-se na água. Era o polo que exigia a maior concentração de cientistas, e as demandas do ecossistema ditavam um trabalho constante in loco. Para tanto, os agentes construíram casas e refizeram suas vidas à margem do rio, reforçando a sede e as construções com plataformas flutuantes, sustentadas por uma complexa engenharia de autorregeneração. Ali, exercia-se também a comunhão e a solidariedade, necessárias para a manutenção de qualquer espécie.

     O país escolhido para o grande e inovador centro de pesquisa do ar foi o Japão, mais especificamente sua antiga capital, Tóquio. Os nipônicos sofriam muito com as mudanças climáticas... mas a resiliência e a disciplina do povo, interligada de um jeito harmônico e saudável à sua tecnologia, superava qualquer crise de maneira invejável. A fim de diminuir os custos, utilizaram uma resistente construção da cidade, a Tokyo Tower, visando já a sua aerodinâmica em formato de V. Revestiram os geométricos espaços vazios da estrutura com vidros refratários que se assemelhavam a diamantes, adicionando detalhes à obra para automaticamente filtrar o ambiente e purificar a ocasional toxicidade ao redor. Impulsionados pelo desejo de mudança, os avanços em Física Gravitacional fizeram a torre, com mais de 200 metros de altura, levitar. Projetada anteriormente para fins turísticos, a construção transformou-se em uma moderna nave espacial, cruzando os céus da metrópole e alcançando distâncias ainda maiores. Ela desempenhava um papel crucial no controle atmosférico, enquanto enriquecia o paisagismo urbano e renovava os ânimos de todos que a viam.

     Por fim, a Terra era estudada em Sant’Andreas, aproveitando-se do histórico e das temidas previsões acerca de sua falha. Temendo algo próximo e de grandes proporções, o polo foi um dos primeiros avanços a ser concluído, servindo não apenas como base, mas também como estrutura capaz de abrigar expansões e novas fortificações, dada a vasta extensão geológica da área. Os terremotos aumentavam a frequência e magnitude nas regiões onde já eram frequentes, e barulhos estranhos e cada vez maiores podiam ser ouvidos em países que, antes, não tinham que se preocupar com aquilo. Porém, sempre existiram males que viriam para bens: ao reforçar os estudos sobre atividades sísmicas, cientistas conseguiram direcionar forças de tremores para potentes e resistentes máquinas espalhadas por todo o globo, com maior concentração no estado da Califórnia. Seguindo a comprida falha, uma hermética contenção de aço reforçado cobria toda a área, e pelas margens esquerda e direita foram anexadas em pontos específicos construções circulares nas quais os empregados trabalhavam. Grandes e maciças torres escuras eram colocadas do lado externo e ao redor dos círculos, abrigando rápidos computadores munidos de inteligência artificial para prever abalos e ajudar na absorção dos impactos.

     — Muita coisa para escrever. Muita coisa ainda está por vir... — Cansado de tanto ler e pensar em cenários possíveis, nem mesmo o calor conseguiu mantê-lo acordado. Fechou as janelas, pois poderia chover de repente, e ligou o ar-condicionado.

     A luz da tela se apagou automaticamente assim que voltou para cama, e o frio artificial que agora fazia no ambiente interno deu-lhe a sensação de estar vivendo no passado, sem maiores preocupações. Faltavam poucas horas para reiniciar a rotina, e nos próximos dias ele teria atividades presenciais à faculdade, o que comparou com a necessidade que todos teriam de uma participação ativa e consciente no mundo. Constantes seriam as incertezas e recorrentes os desafios, mas, para cada adversidade, a humanidade conseguia sim trazer uma nova, ou até mesmo inovadora resposta, para se reinventar. Existira, sim, vida após 3.020... só que em um padrão diferente, talvez. Permitiu-se sonhar, e os sonhos ecoavam em possibilidades.



Davi Dumont Farace.

Fevereiro / 2025

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