sábado, 7 de junho de 2025

O passo da tempestade.

 

     (...) E então, o céu pressagiava algo assim que o cavaleiro acabara de despistar a criatura gorda e humanoide que lá fazia a ronda. O cenário já lhe era conhecido, e renovava seu ânimo e seus desejos sempre que enxergava aquelas folhagens amarelas e vivas em tons divinos. E o Sol da manhã, adicionado às abundantes e nascentes cores primaveris, sobrepunha os contextos celestes e mais verdadeiros ao mesmo plano do que era mundano e, por assim dizer, menos digno.

     No entanto, conforme ali progredia, já não lhe era segredo o que estava por vir. Visões divinas pressupõem embates divinos... e memoráveis. Cuidando-se para não esquecer das palavras de Melina, montou celeremente em Ásirus, e correram, já pressagiando os ventos. Pedras tremiam, árvores balançavam, e algumas cairiam em breve. A colossal criatura varreu os céus. Era um dragão! O maior dos quais já tivera enfrentado.

     Escamas grossas e intimidantes, de um misterioso branco calcificado, chocavam-se e acresciam os trovões e ares de batalha que pareciam servir-lhe de manto. O seu caminhar era majestoso, de notória inteligência para a espécie, e coordenava os seus movimentos e olhares às estratégias do herói, ignóbil cavaleiro que ali estava embaixo. Muito acima (e a orgulhosa ameaça erguia seu reptiliano pescoço a fim de enfatizar), dois chifres longos, que se ascendiam em vermelho-trovão em tópicos momentos, coroavam a besta com uma aparência eterna e  ancestral.

     Sem se gabar, o cavaleiro bateu em retirada para a esquerda, enquanto uma das gigantes patas dianteiras da fera limpava o campo com uma onda de choque e poeira, aumentando ainda mais seu destrutivo alcance. Em terra, desviava-se com giros ora desmedidos ora bem marcados; e, atento mentalmente à distância, valeu-se de duplos de seu cavalo para não tomar tanto dano. Seu estoque de curas rápidas já se punha mais robusto, e aquela adversidade às fendas anteriores foram-lhe imprescindíveis ao atual desafio; ilustrando ensinamentos esquisitos da avó, que persistia em dizer algo sobre oportunidades em momentos difíceis. Porém, ainda que fosse desmedido o embate, seu ego novamente o impedira de usar vantagens, e ia de igual para igual, sem as evocações muito menos os talismãs. Erro ou não, queria ver o que somente sua lança e seu escudo, já elevados a padrões de armas lendárias, podiam fazer frente a criaturas de mesma forma colossais.

     Desvencilhando-se, sofrendo por golpes mas também desferindo alguns, olhou ao redor e viu que o inimigo gordo e de pele cinzenta voltava à cena. Teve ali uma ideia!

     O dragão erguia voo, despejando chuvas de fogo de vários lados. Apesar de optar por não usar apetrechos que diminuíssem o gosto e o devido respeito à batalha, foi a ocasião perfeita para usar o seu escudo de titânio, revestido com uma milimétrica combinação de materiais que criariam ainda uma fina cortina de névoa quando sua parte frontal entrasse em contato com qualquer outra substância potencialmente perigosa. E tal estratégia revelar-se-ia mais do que auspiciosa contra o calor intenso, pois o véu criado jorraria água pela física, esfriando as rotas desesperadamente traçadas, ajudando ao controle de temperatura. A  fim de tornar a ideia visual e útil, o viajante trajava luvas laranja-claro feitas em cerâmica, reclamadas por ele próprio em uma distante e difícil torre, que devido ao contexto lhe comparavam à divina pele da majestade alada. O líquido fluir inclusive dava mais agilidade a Ásirus, possível também de ser usado uma vez que ali não se fazia um mar de magma como outrora. Novamente de galope, mirou seus esforços não mais ao gigante, mas sim à outra ameaça que se inseria onde não era chamada. Deveria ter baixa visão, com uma inteligência igual aos humanos deformados, pois poucos passos a cavalo foram necessários para enfurecê-lo e redirecioná-lo para onde queria especificamente.

     Despistando-o porém, e avançando nas brechas entre os relâmpagos, fizera a fera brigar contra o desavisado homem. Lembrava-se saudosamente dos adversários em frente a grandiosa e intransponível ponte, mas com toda a certeza do mundo conhecido e desconhecido também iria ouvir sobre tons de cores distintas e opostas se enfrentando, em simbólica luta do bem contra o mal. Pela força e resistência, o dragão iria ganhar. Contudo, bastou mais duas ou três investidas, para que o grande rei dos céus alçasse voo e abandonasse tal interessante disputa. Aparecendo de onde estava, o herói achou aquilo curioso, mas acatou e com isso louvou ainda mais a perspicácia do bicho. Atirando um rápido e certeiro machado, acertou o alvo de longe.

     — Perfeito e natural labirinto para jogos de esconde-esconde. Parabéns dragão, vosso nome e vontades se fazem ouvir como trovões à Terra.

     E sem hesitar, retirou-se do palco de antigas comitivas reais caídas para continuar à contenda. Elevações e deslumbres paradisíacos avistava, mas objetivamente tocava com os pés nus o solo em busca de tempestades. Chegou a um campo aberto, desde onde se podia avistar uma igreja. Olhos amarelos espreitavam do muro a vinda do desafiante, de mesma forma certos e esperando o embate final. Novamente sem penduricalhos nem adornos, as forças se enfrentavam. O dia virava noite conforme o tempo.

     Envoltos aos ventos violentos que jamais cessavam, e aos raios que ali despejavam como sentenças, o bicho foi o primeiro a fazer seu movimento. Nova onda de choque e poeira crescia em direção ao cavaleiro, mas esta já lhe era uma tática conhecida. Ele ainda galopava em segurança à montaria (o que era super válido para se desvencilhar das rajadas criadas, já que optara na luta por não usar um elixir sequer). Mas, lembrando-se de outros momentos, instantes esses nos quais Ásirus fora mandado direto ao seu mundo de origem por uma total imperícia do amigo, achou melhor guardá-lo e terminar o embate solitariamente. Doido, ele? Outros poderiam entender assim. Porém o lendário homem agora estava embaixo do divino animal, e... também aquilo serviu-lhe de ensinamento ao atestar na prática uma vantagem de ser baixo.

     A fera o encontrou com a grande cabeça e cuspiu uma corrente elétrica em direção ao chão. Felizmente as suas botas de cerâmica, do mesmo set divino pego à torre, encaixaram como para-raios tal qual as velozes e resistentes patas do companheiro quadrúpede. O seu escudo não lhe impediu de levar dano também, mas lhe deu tempo de correr como se não houvesse amanhã. Respirava aliviado, mas de olhos aos clamores da batalha. Que visão divina! Que embate memorável!

     — Estou muito empolgado. — Permitiu-se rir, mas teve o cuidado para não proferir a lembrança de forma tola e desmedida. Vigilância constante!

     Forças se chocavam e se afastavam como em prova de justa. Não dispunha mais do cavalo e, embora isso lhe conferisse maior liberdade de movimento em terra firme, a ausência da montaria também lhe roubava a possibilidade de alcançar certas alturas. Mas... ainda assim poderia parear, mesmo que por breves e pontuais instantes, as díspares estaturas. A garra de dragão, poder tomado para si desde o começo do último inverno, era, por natureza, um ataque ofensivo. Mas ali, tendo observado a carapaça divina, como se forjada em magma antigo e há muito resfriado, ousou usá-lo como habilidade de suporte.

     Águas e ventos já se acumulavam à nova altitude, e a fera sabiamente valia-se daquilo também como arma, “reformulando” as anteriores chuvas de fogo às atuais condições atmosféricas, evocando agora intimidantes e esplêndidas correntes de raios.

     A fim de confundir o inimigo, ou ainda aumentar o clímax, o homem ficou parado, contando friamente os ritmos dos trovões. No momento preciso, uniu sua perícia em equilíbrio ao antigo poder, e fez da garra uma inusitada mola propulsora para ficar face a face com o bicho. De cima, disparou um lança-chamas horizontal e, logo em seguida, outro vertical graças ao controle de tempo. Não usava sopros de gelo, por causa da condução de eletricidade, e ficou feliz de se valer do mesmo “ignóbil poder”, que outrora pensou ser muito mais cômodo.

     Como aguardada e esperançosa chuva, foi enfim tempo de colheita! (...) E assim terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.

A primeira crônica.

  A primeira crônica.         — Mas que calor é esse! Será que existe vida após 3.020?      O mês era junho. As folhas caíam... mas a te...