(...) E então, o céu pressagiava algo assim
que o cavaleiro acabara de despistar a criatura gorda e humanoide que lá fazia
a ronda. O cenário já lhe era conhecido, e renovava seu ânimo e seus desejos
sempre que enxergava aquelas folhagens amarelas e vivas em tons divinos. E o
Sol da manhã, adicionado às abundantes e nascentes cores primaveris, sobrepunha
os contextos celestes e mais verdadeiros ao mesmo plano do que era mundano e,
por assim dizer, menos digno.
No entanto, conforme ali progredia, já não
lhe era segredo o que estava por vir. Visões divinas pressupõem embates
divinos... e memoráveis. Cuidando-se para não esquecer das palavras de
Melina, montou celeremente em Ásirus, e correram, já pressagiando os ventos.
Pedras tremiam, árvores balançavam, e algumas cairiam em breve. A colossal
criatura varreu os céus. Era um dragão! O maior dos quais já tivera enfrentado.
Escamas grossas e intimidantes, de um misterioso
branco calcificado, chocavam-se e acresciam os trovões e ares de batalha que
pareciam servir-lhe de manto. O seu caminhar era majestoso, de notória
inteligência para a espécie, e coordenava os seus movimentos e olhares às
estratégias do herói, ignóbil cavaleiro que ali estava embaixo. Muito acima (e
a orgulhosa ameaça erguia seu reptiliano pescoço a fim de enfatizar), dois
chifres longos, que se ascendiam em vermelho-trovão em tópicos momentos, coroavam
a besta com uma aparência eterna e
ancestral.
Sem se gabar, o cavaleiro bateu em
retirada para a esquerda, enquanto uma das gigantes patas dianteiras da fera limpava
o campo com uma onda de choque e poeira, aumentando ainda mais seu destrutivo
alcance. Em terra, desviava-se com giros ora desmedidos ora bem marcados; e,
atento mentalmente à distância, valeu-se de duplos de seu cavalo para não tomar
tanto dano. Seu estoque de curas rápidas já se punha mais robusto, e aquela
adversidade às fendas anteriores foram-lhe imprescindíveis ao atual desafio; ilustrando
ensinamentos esquisitos da avó, que persistia em dizer algo sobre oportunidades
em momentos difíceis. Porém, ainda que fosse desmedido o embate, seu ego
novamente o impedira de usar vantagens, e ia de igual para igual, sem as
evocações muito menos os talismãs. Erro ou não, queria ver o que somente sua
lança e seu escudo, já elevados a padrões de armas lendárias, podiam fazer
frente a criaturas de mesma forma colossais.
Desvencilhando-se, sofrendo por golpes mas
também desferindo alguns, olhou ao redor e viu que o inimigo gordo e de pele
cinzenta voltava à cena. Teve ali uma ideia!
O dragão erguia voo, despejando chuvas de
fogo de vários lados. Apesar de optar por não usar apetrechos que diminuíssem o
gosto e o devido respeito à batalha, foi a ocasião perfeita para usar o seu
escudo de titânio, revestido com uma milimétrica combinação de materiais que
criariam ainda uma fina cortina de névoa quando sua parte frontal entrasse em
contato com qualquer outra substância potencialmente perigosa. E tal estratégia
revelar-se-ia mais do que auspiciosa contra o calor intenso, pois o véu criado
jorraria água pela física, esfriando as rotas desesperadamente traçadas,
ajudando ao controle de temperatura. A fim de tornar a ideia visual e útil, o
viajante trajava luvas laranja-claro feitas em cerâmica, reclamadas por ele
próprio em uma distante e difícil torre, que devido ao contexto lhe comparavam
à divina pele da majestade alada. O líquido fluir inclusive dava mais agilidade
a Ásirus, possível também de ser usado uma vez que
ali não se fazia um mar de magma como outrora. Novamente de galope, mirou seus
esforços não mais ao gigante, mas sim à outra ameaça que se inseria onde não
era chamada. Deveria ter baixa visão, com uma inteligência igual aos humanos
deformados, pois poucos passos a cavalo foram necessários para enfurecê-lo e
redirecioná-lo para onde queria especificamente.
Despistando-o porém, e avançando nas brechas entre os relâmpagos, fizera
a fera brigar contra o desavisado homem. Lembrava-se saudosamente dos
adversários em frente a grandiosa e intransponível ponte, mas com toda a certeza do mundo conhecido e desconhecido
também iria ouvir sobre tons de cores distintas e opostas se enfrentando, em
simbólica luta do bem contra o mal. Pela força e resistência, o dragão iria
ganhar. Contudo, bastou mais duas ou três investidas, para que o grande rei dos
céus alçasse voo e abandonasse tal interessante disputa. Aparecendo de onde
estava, o herói achou aquilo curioso, mas acatou e com isso louvou ainda mais a
perspicácia do bicho. Atirando um rápido e certeiro machado, acertou o alvo de
longe.
— Perfeito e natural labirinto para jogos
de esconde-esconde. Parabéns dragão, vosso nome e vontades se fazem ouvir como
trovões à Terra.
E sem hesitar, retirou-se
do palco de antigas comitivas reais caídas para continuar à contenda.
Elevações e deslumbres paradisíacos avistava, mas objetivamente tocava com os
pés nus o solo em busca de tempestades. Chegou a um campo aberto, desde onde se
podia avistar uma igreja. Olhos amarelos espreitavam do muro a vinda do
desafiante, de mesma forma certos e esperando o embate final. Novamente sem
penduricalhos nem adornos, as forças se enfrentavam. O dia virava noite
conforme o tempo.
Envoltos aos ventos violentos que jamais
cessavam, e aos raios que ali despejavam como sentenças, o bicho foi o primeiro
a fazer seu movimento. Nova onda de choque e poeira crescia em direção ao
cavaleiro, mas esta já lhe era uma tática conhecida. Ele ainda galopava em
segurança à montaria (o que era super válido para se desvencilhar das rajadas criadas,
já que optara na luta por não usar um elixir sequer). Mas, lembrando-se de
outros momentos, instantes esses nos quais Ásirus fora mandado direto ao seu
mundo de origem por uma total imperícia do amigo, achou melhor guardá-lo e
terminar o embate solitariamente. Doido, ele? Outros poderiam entender assim.
Porém o lendário homem agora estava embaixo do divino animal, e... também
aquilo serviu-lhe de ensinamento ao atestar na prática uma vantagem de ser
baixo.
A fera o encontrou com a grande cabeça e cuspiu
uma corrente elétrica em direção ao chão. Felizmente as suas botas de cerâmica,
do mesmo set divino pego à torre, encaixaram como para-raios tal qual as
velozes e resistentes patas do companheiro quadrúpede. O seu escudo não lhe
impediu de levar dano também, mas lhe deu tempo de correr como se não houvesse
amanhã. Respirava aliviado, mas de olhos aos clamores da batalha. Que visão
divina! Que embate memorável!
— Estou muito empolgado. — Permitiu-se
rir, mas teve o cuidado para não proferir a lembrança de forma tola e
desmedida. Vigilância constante!
Forças se chocavam e se afastavam como em
prova de justa. Não dispunha mais do cavalo e, embora isso lhe conferisse maior
liberdade de movimento em terra firme, a ausência da montaria também lhe
roubava a possibilidade de alcançar certas alturas. Mas... ainda assim poderia
parear, mesmo que por breves e pontuais instantes, as díspares estaturas. A
garra de dragão, poder tomado para si desde o começo do último inverno, era,
por natureza, um ataque ofensivo. Mas ali, tendo observado a carapaça divina,
como se forjada em magma antigo e há muito resfriado, ousou usá-lo como
habilidade de suporte.
Águas
e ventos já se acumulavam à nova altitude, e a fera sabiamente valia-se daquilo
também como arma, “reformulando” as anteriores chuvas de fogo às atuais condições
atmosféricas, evocando agora intimidantes e esplêndidas correntes de raios.
A fim de confundir o inimigo, ou ainda
aumentar o clímax, o homem ficou parado, contando friamente os ritmos dos
trovões. No momento preciso, uniu sua perícia em equilíbrio ao antigo poder, e
fez da garra uma inusitada mola propulsora para ficar face a face com o bicho.
De cima, disparou um lança-chamas horizontal e, logo em seguida, outro vertical
graças ao controle de tempo. Não usava sopros de gelo, por causa da condução de
eletricidade, e ficou feliz de se valer do mesmo “ignóbil poder”, que outrora
pensou ser muito mais cômodo.
Como aguardada e esperançosa chuva, foi enfim tempo de colheita! (...) E assim terminou-se mais uma saga do herói, com disciplinas e palavras a seu ponto.