“(...) E então, o viajante mascarado já
endireita sua montaria espectral para o exterior desconhecido. Para um mundo
que “não é seu, mas que mesmo assim a ele lhe pertence”, guiado apenas pelo
silêncio do tempo e pela escuridão negra das essências”.
— Sei não... já parece confuso. — Elloria,
a dama que aquele simpático homenzinho encontrou para chamar de sua, falou com
voz de mesma forma engraçada, mas com um tom a mais de seriedade. — Entendi que,
quando falas de “o mundo não é o seu”, estás deixando o público entender que
“ninguém pode ter o título de dono do mundo, apesar de habitar nele”.
Mas o “a ele lhe”... dois pronomes juntos? Para quê, homem?
— Perspicazes os vossos sentidos, nobre
esposa! Podemos deixar assim: (...) “E então, o viajante mascarado já endireita
sua montaria espectral para o estrangeiro. A visitar um mundo que ‘não é seu,
mas que mesmo assim lhe pertence’, guiado apenas pelo silêncio do tempo e pela
escuridão negra das essências”.
— Devo congratular-te ainda pelo uso da
vírgula, enfatizando com esta a ideia de que não podemos nos dizer senhores
disso ou daquilo. Mas... não achas o trecho rebuscado demais? Vejamos: a pessoa
da história sai de casa montada em algo de difícil imaginação para o nosso
grande público. Ainda que tenha gostado do termo “estrangeiro”, e de como
adaptaste a sequência consecutiva, ela não foi de fato para outras terras;
apenas saiu para “dar uma volta”. Palavras e ares rebuscados dão o nosso
diferencial particular, mas não vamos apresentá-lo nas mais altas cortes ou em
fidalgos castelos. E... assim como podes tirar adornos do texto, trates-me como
tu! Não sou uma patrícia de nariz em pé.
— Mas é claro que não sois, minha cara
Elloria. Embora não tenhais sangue real, vos apreço como a minha rainha! E
ademais, o manifesto pode evoluir para as mais elevadas camadas da sociedade,
porque não? Reparais que somente narro fatos reais, quer recentes ou dos mais
antigos sejam. Minhas batalhas não são contos que se perdem no vento; tudo é
verdadeiro. E, que bom, agraciados somos andarilhos a perambular por aí a
difundir e a perpetuar histórias!
— E quem disse que são mentira? Uni-me a
um homem sem igual, mas não é bom ter ego o bastante para acreditar que
o mundo inteiro aguarda a tua pena para existir. Mas vá, bem sabes que admiro
esse teu ardor de escriba errante — disse Elloria, agora de braços cruzados,
embora um leve sorriso já lhe dançasse nos lábios. — Só tomes cuidado para,
entre um desafio e outro, não esqueceres de olhar o leitor, ou no nosso caso, o
público, nos olhos. Nem todo mundo gosta de heróis que vêm montados em espectros
ou entende o que são “essências negras”. Permita-me...
Ela se aproximou, tirou as mãos do companheiro
do tomo, e tomou levemente a pena para si. Ao lado do homem, reformulava a
história:
“(...) E então, ela já redireciona seu
cavalo para o horizonte, deixando a segurança da vila para trás. Assim como a
maioria, não conhecia aquelas passagens, e a escuridão da noite eterna a fazia
tremer como criança”.
— Elloria, querida esposa e consorte!
Tratar-lhe-ei agora como “tu”, pois noto vossa preferência e ouço vossa voz até
mesmo na escuridão mais inatural desta cantinela. Mas, de mesma forma a qual
alertardes-me, compete-me o encargo de revisar: continuaremos com o pronome
“ela”, já avisando que se tratará de uma heroína? E mais, não são somente as
criancinhas que tremem ou têm medo, ora. Se fosse assim...
— Trate os sujeitos como eles são! E, se cá
estamos a redigir um relato histórico, a tal odisseia que aconteceu com uma
antepassada tua, estaríamos errando ao optar pelo batido pigmento de cena masculino
só para agradar aos gabarolas que sempre existiram. Se não fosse por essa
mulher... tais fanfarrões nem nasceriam, deveras! E... é claro que sentimos
medo, o que em certos acasos ajuda em nossa sobrevivência; mas tu a de convir
que os pequenos estão mais “vulneráveis”, e ainda mais neste mundo sombrio que
parece não ter mudado tanto. — E ali, com o penúltimo adjetivo, ela ligou os
pontos. — Trate os sujeitos como realmente são, meu caro e bom homem!
— Elloria, querida esposa e consorte!
Gosto muito desse epíteto e acho-me realmente com sorte por caminhar e seguir
ao lado vosso! Mas, voltemos a tratar-nos em “tu”. Achas mesmo que esse começo
vai pegar? Sei não... vai ter gente que pode achar...
— Que achem o que quiserem! Não fostes tu
que, motivado por um certo estrangeiro sem nome, saístes dos confortos reais e
revisitastes tua mãe na academia? — Ela parou à voz como um instante épico, e
sorriu fraternalmente para o autor. — Eu sei da história. Muito boa por sinal!
Deveras... mas se tu me falas que foi um homem, e não uma mulher, certamente
passará bem pela crítica e pelo pensamento de o que seria natural, mas receio
que com isto estejas anulando tua própria voz, e escondendo ‘fui eu sim, este
homenzinho covarde que saiu e deu novos rumos à história’. E aí a lenda não
passaria de cantinela que se perde ao vento. Podes usar um termo mais rebuscado
aqui, não vejo problema algum. Porque não: “(...) até mesmo na escuridão mais
inatural deste narramen”?
— Ahhh... Ouvir-te é como a paz em momentos de conflito; é o ar que renova todo o meu pequenino ser e o qual respiro! Continuemos pois, juntos nesta epopeia, trazendo os tempos verbais aos presentes atuais, a fim de deixar mais enfático e decisivo o texto:
v
(...) E então, ela já redireciona seu
cavalo para o horizonte, deixando a segurança da vila para trás. Assim como a
maioria, não conhecia aquelas passagens, e a escuridão da noite eterna a fazia
tremer como criança.
— Eu sei, eu sei Marcha Torta... Eu também
preferia ficar em casa; junto à família, envolta à fogueira e pregando peças
aos habitantes e refugiados da vila. Mas... o dever nos chama. A História pode
ser reescrita por nossas próprias mãos. — Acariciando a crina lisa e trançada
do animal, Gislana cruza a passagem que conecta a sua pequena vila ao grande
mundo que ali se faria ver.
A garota, à flor da idade de seus 13 anos,
não leva consigo espadas, escudos, tampouco quaisquer apetrechos reluzentes que
podem dar a ela um aspecto hostil. Contudo, não sai da segurança de seu lar de
mãos vazias: porta às suas costas uma flauta de madeira, sem adornos nem
corantes, que já estava em sua família há gerações. Foi concebida por magia,
através de um original feito em osso, o qual os antigos aldeões e pessoas
comuns usavam para cantar tranquilas e inventadas serestas melodiosas por aqui
e acolá. Aldreda, a sua tataratataratataratataratataratataratataratataravó soou
pela primeira vez o então renovado instrumento, que tinha uma estética ignóbil
para ter status de lendário, mas que era marca de um avanço considerável
da humanidade para aquele tempo. ...Tempo, ah o tempo. Ali, como
o podiam medir? Ora, no estreito limiar em que estava... tudo parecia...
exatamente igual à antiguidade que ouvia nas histórias. Muito maior e mais
amedrontador do que apenas alguns poucos monstrinhos marinhos após o horizonte,
no contexto atual o Sol, a Lua, a verdade eram... morosamente os mesmos desde
que o mundo era mundo. Toda a natureza que através de alguma ordem
firmamentística fora pensada para existir tinha sido sugada para sabem-se os
Deuses onde; e as lendas, os mitos, e os contos do estrangeiro não passavam
disto: de lendas, mitos, e contos do estrangeiro.
— “(...) Todo mundo sente medo e saudade
de vez em quando... e é normal chorar! (sei que deve lhe estar descendo água
dos olhos no momento). Você não é diferente de ninguém. É apenas uma pessoa de
treze anos, absolutamente capaz, de reescrever nossa história. Que vossas
verdades e desejos se façam ouvir. — Coordenou o seu último respiro aos espaços
vazios que separavam o corpo inteiro do bilhete da direta e fria informação
final. Seus olhos, realmente estavam mareados e lembravam-lhe da criança que
ainda era. — Quando chegares ao Limite, olhe para trás só uma vez. Depois,
jamais.”
No curto trajeto ali, ela leu a carta três
vezes; e em todas... com entonações diferentes porque assim melhor lhe
relaxava. Teria tempo de ler até mais uma quarta, observando os difusos
trotares e os não-uniformes relinchos de Marcha Torta; mas achou que 3 já era o
bastante, aumentando o timbre e as pausas dramáticas quanto maior fosse o
algarismo. Ela chegou! Mas... onde seria o tal “Limite”? E que rumo tomar
depois?
Devia ser por onde exatamente passava agora,
pois, ainda que olhou para trás somente uma única vez, nos instantes em que
resolvia voltar não podia mais executar a ação; era como se um muro invisível
de vidro a impedisse o regresso.
Restava-lhe
apenas a alternativa de seguir em frente. E, rendida ao cansaço, curvou-se
sobre o dorso de sua montaria, como quem busca abrigo e fôlego para o próximo
passo. Ambos seguiram noite adentro... Ou seria dia? Ainda não podemos afirmar,
uma vez que o horas não passam cronologicamente.
— Ao menos, não encontraremos adversários humanos por aqui. Devem estar todos recolhidos às suas cidades e vilas... — E, seu olhar ainda puro e infantil a distanciava das palavras “inimigo” e “guerra”. Desejava apenas um futuro melhor e com recursos mais justos, e sempre acreditou que o diálogo seria uma forma eficaz de equilibrar tudo. A fim de não se sentirem tão sozinhos, pegou a flauta e começou a tocar.
v
— Bom, perfeito está! — Os dois sorriram
mutuamente, mas Elloria assim continuou, com as mãos à cintura, virando-se para
o autor: — Só acho que está deveras longo para um começo com pouca movimentação.
Mas dado aos detalhes, explicações e tudo mais, não está deverasmente chato ou
enfadonho. Parabéns, pequenino homem.
Ahhh... os tempos bons e memoráveis da
academia! Desde a sua infância começava a colecionar apelidos, alguns graças às
suas manias bobas e duvidosas de inventar feitiços, outros por seu gênio
evasivo e artista de fugir das aulas, e os restantes lhe vieram ali com o seu
próprio e natural desenvolvimento, único e “distante até demais” para um ser
que convive diariamente com conceitos abstratos como feitiços.
E, tendo passada aquela adversidade de ser
expulso de lá por ninguém menos do que sua própria mãe, a Maga Suprema Rennala,
dona do instituto, passou os tempos de sua mocidade refugiado no reino das
montanhas; e foi junto ao castelo que ganhou as alcunhas relacionadas à sua
notável e triste estatura. Seu otimismo era um bom professor para fazê-lo
relevar, e finalmente... depois que foi “iluminado” por um certo alguém e
resolveu que já era hora de sair de seu lugar comum, conheceu uma personalidade
“fora de série” que enfim disse com mais leveza e graciosidade aquela adversa
verdade. O homenzinho, antes covarde e que ficava só em seu lugar comum, mal
via a hora de voltar às origens e mostrar para todos da academia o grande que
tinha se tornado.
— ...Obrigada! Eu também não vejo mais
minha vida sem ti. Contudo receio que ainda seja cedo. — Realmente, tinha
passado muito pouco tempo, mas já era o bastante para o meloso e romântico ser
já fazer daquilo uma necessária permissão para revisitar a sua família e os
seus amigos antigos. Ele ficou, então, parado em estado de choque, em teatral e
cômica postura. A mulher amavelmente continuou: — Ela tocava sua flauta. Está
bom. Individuaremos qual seja a música, e falaremos dos ânimos e das sensações
do cavalo?
“(...) E então, ela levou a flauta aos
lábios. Os primeiros sopros soaram incertos, como se a própria madeira do
instrumento precisasse lembrar-se de como conduzir uma melodia depois de tanto
silêncio. Mas logo, um som grave e arrastado abriu espaço para tons mais
agudos, leves e hesitantes como passos de criança em chão molhado. A música não
era uma canção conhecida, tampouco algo que alguém da vila pudesse nomear...
Era como se o vento que vinha do além sussurrasse a cada nota o que deveria vir
a seguir.
Marcha Torta, até então com os músculos
tensos e orelhas retesadas, começou a baixar a cabeça em pequenos movimentos,
como se sentisse a vibração emanada da própria terra sem vida. Com o tempo, o
seu trotar irregular cedeu espaço a um caminhar mais ritmado, quase
cerimonioso. As folhas secas do caminho estremeceram, a poeira assentou-se por
instantes, e a própria noite pareceu ouvir.
Gislana respirou fundo. Tocava para si,
para o cavalo, para os Deuses (ainda que esses talvez não fossem boas pessoas).
Continuava nesse ritmo para não enlouquecer de medo.”
— Pode parar... Novamente, muitas
informações e palavras demais, sem sair do lugar. Eu optaria por deixar assim,
tentando enxugar:
“Levando a flauta aos lábios, os primeiros
sopros soaram incertos, como se a própria madeira do instrumento precisasse
lembrar-se de como conduzir uma melodia depois de tantos hiatos de silêncio. Juntando
aquilo à não mais possibilidade do retorno, o som grave e arrastado abriu
espaço para tons mais agudos, ora rápidos e ora devagar, como passos de criança
em chão molhado. E assim foram, brincando de pressagiar
o que viria a seguir.
Marcha Torta, que iniciou seus trotares
com postura altiva, começou a baixar a cabeça em pequenos movimentos, talvez sentindo
a vibração emanada do próprio chão escuro. Caminhava também de um jeito menos
desajeitado e mais ritmado.
Quando já deviam estar à uma distância de
4 léguas, avistaram um sorriso meio alegre e meio malicioso de um gato. (...)
— Uwh! A parte do gato! Animal que desde
os tempos da minha bisabisabisabisavó eram retratados como criaturas místicas,
conhecedores da passagem entre o nosso mundo palpável e o além. Não creio, não
creio! — Estava surpreso, sim. Mas perplexo também ficou dadas as continuações
de Elloria. Resolveu falar, igualmente com as mãos a cintura. — Em verdade em
verdade te digo, noto célere progressão ao cortares meu final depois de “terra
sem vida” e logo já incluir a memória do sorrir felino. Mas atentes para que,
no início dos tempos, não havia sequer alguma natureza. E, como tal, penso que
não seja fiel a gente usar o adjetivo “molhado”, pois antes nem a chuva se
conhecia; e além do que... sabes mesmo o quanto mede uma légua? Ali... não
existia algo para se comparar muito menos mapas... Como se media?! Jarda é
maior do que légua? ...Criações e readaptações são bem-vindas. Mas; alto lá,
alto lá Elloria...
Agora era ela quem ficava petrificada em
pose teatralmente cômica. Ainda se valeu do polido verbo “pressagiar”, mesmo
que achasse formal demais. Mas o homem à frente não deixava passar nada; e o
diferencial que a fizera escolher dentre todos aquele ignóbil ser para seu
futuro amoroso era justamente aquele: seu poder de observação, não deixando
escapar um corte de cabelo diferente que fosse.
— E também, de acordo com a gramática, não
se separa por vírgula sujeito de verbo. Colocaria então um simples ponto final
entre “foram” e “brincando”. E, minha antiga e singular linhagem sentiu-se
muito honrada quando tu enfatizaste os “hiatos de silêncio” que eram
coordenados pela flauta. Lembrou-me de meus começos de escrita... Agora, já
travadas as eras e batalhas justas, somos melhores juntos! Mas lembre-se: um
casal não pode diferir em mais de 80 palavras.
— O quê? Quem inventou essa regra? Mas
está bem, vamos tentar não nos distanciar muito, pois quem se distancia é
Gislana. — E com isso, se Elloria fosse uma figura da alta corte ou ainda
fortemente respeitada no meio intelectual, teria criado, juntamente com o
homenzinho (claro), mais um daqueles ditados populares que o povo repete até
sem saber de onde veio: “ ...pois quem se distancia é Gislana.” — E mais...
sim, no cânone a passagem ‘foram, brincando’ estaria errada. Mas aqui a pausa
deu o tom certo da frase, e é completamente inteligível aqui as duas ações que
se conectam...
— S... Sim! O que se compara ao gerúndio,
não é? Caminhavam, ele marchando feliz e ela admirando a paisagem com seu olhar
puro infantil, enquanto ambos, e também nós os leitores ou o público,
imaginamos o que poderia estar escondido atrás das superfícies negras pelo
caminho. — Ele se rendia à esposa, sorrindo. — Deveras... esse apurado senso de
direção pode ser realmente marca de nossa família há séculos. Apraz-me em muito
o nome deste cavalo, pergunto-me onde Marcha Torta esteja hoje em dia.
— Valoroso e nobre animal! Põe-se a
marchar e a correr livremente em outros prados. — A companheira olhou para o
homem, e duas sinceras lágrimas se encontraram ao papel. — Se sentimos falta, é
porque foi bom. Marcha Torta e Gislana cumpriram suas missões. E fora graças a
eles, graças à uma certa e necessária petulância, que podemos hoje partir em
viagem pelos quatro cantos do mundo. Famílias se casam, mães continuam a
conceber os seus filhos, e eles correm em planos e vielas de desenvolvimento.
Cada coisa em seu momento, cada coisa em sua importância.
— Ah! Valente e esposa com sorte! Não
canso-me de fazer declarações e nem de trocar gracejos e olhadelas a vós. Mas,
tal como a regra aponta para atrair pronomes observadas as palavras de cunho negativo
à escrita, torno-me um servo vosso, e vossas correções são como água que irriga
os meus campos inférteis. Continuemos, pois, nesta trova:
“(...) Cruzaram uma distância de
aproximadamente, vejam só, 15 mil passos ao norte. E, os dois amigos sabiam
certamente que direção tomar pois as barreiras invisíveis impediam nos heróis
de retornar. Avistaram então um sorriso meio alegre e meio malicioso de um
gato. (...)”
— Fizeste uma criancinha andar 15 mil
passos até o próximo objetivo? Bem... eu não sei por que a humanidade tende a
achar que as coisas são “valorosas, boas, reais e dignas” quão mais grandiosas
e difíceis sejam. Realmente eles andaram muito até identificarem o gato; mas
não deveria ser essa contagem.
— Mas, em minha história, é essa a
equivalência. E, mesmo que a protagonista seja uma jovem criança, é bom “entrar
na vida e se fazer parte” desde cedo. E com isso ainda podemos deixar o público
na expectativa de que algo vai acontecer.
— Ou... — A coautora olhou para ele e quis
falar perguntá-lo se o próprio homem se dizia parte da vida ou se muito a
deixou passar. Mas não o fez. Redirecionou a conversa para outro ponto. —
...cansaremos o leitor por tantos espera. Assim como o sinal de “(...)”, que
claramente indica que coisas anteriores aconteceram; mas fica cansativo ver tal
marco de hora em hora. Apenas aspas duplas são necessárias, uma vez que somente
estamos a redigir o fato, sem interferir nos acontecimentos. Se me permite:
“Cruzaram uma distância de aproximadamente cinco mil passos. A direção era ditada pelas paredes invisíveis, que barravam o retorno dos heróis ao lar. Tão logo, perceberam um sorriso alegre e meio malicioso de um gato.”
v
— Não é comum passarem humanos por aqui,
mas... olá você que aqui me enxerga — e o animal, visível apenas da cabeça para
cima por causa da escuridão ao redor, falou com sua voz cansada e entrecortada
por chiados e ronronares. A menina unicamente conhecia o que seria um cavalo
graças ao seu companheiro, o qual estava à vila e especialmente em sua família há
gerações. Jamais podia imaginar biologias diferentes daquela, e ainda menos as
que pudessem compreender e se comunicar em sua própria língua natal. — O que
faz por aqui tão longe de casa, criança?
— Hey! Não sou criança... já tenho mais de
10 anos! — a heroína retrucou na mesma hora. Marcha torta relinchou, talvez por
achar curioso ou agradável avistar outro amigo de também quatro patas. — E
você, quem é?
— Ora... Ora, quem posso ser?... Sou um
gato, afinal. Dizem que pertenço à categoria dos animais, a mesma que a do seu
cavalo. Sou pequeno; acho que meu comprimento está para uns 100 ou 120
centímetros e minha altura não passe dos 40. Deveras, minha cabeça é realmente
um pouco desproporcional a meu corpo, e meu sorriso é marca registrada de minha
espécie. Agora, como desejas me chamar, criança?
Caso Gislana já estivesse com 20 ou 30
luas completas, provavelmente acharia mais esquisito aquele encontro; mas a
inocência e a curiosidade próprias da idade inclusive a permitiram nomear “Tom”
a nova entidade, assemelhando o gosto e o interesse da menina por música e tons
que ora subiam ora desciam. Ela se fascinava com a sabedoria do felino, e não
saberia elaborar uma apresentação tão objetiva e eloquente como aquela. Devia
ser porque Tom era mais velho.
— Um parente meu outrora falou para também
outra menina o seguinte: “Quem não sabe para onde vai, qualquer caminho é bom”.
Mas tu, querida Gislana, já deves ter saído do vilarejo com um objetivo muito
bem traçado; caso não o fosse, não estarias aqui. — E ele pulou em direção à
heroína, o que a fez melhor identificar seu corpo. Para estudiosos de eras
consecutivas, sua efígie corresponderia exatamente a um animal normal, porém a
entidade escondia algo de místico por entre seu pelo roxo escuro com listras beges.
Era também um viajante, e morava em planos distantes. — A partir de agora, os
pássaros lhe mostrarão o caminho, e cabe a você a decisão de segui-los ou não.
Os amplos caminhos não mais a bloquearão, e de mesma forma já és livre para
escolher aonde ir.
E assim, sem qualquer despedida ou cerimônia mais elaborada, a criatura sumiu. E não foi normalmente como as demais entidades a caminhar horizontalmente pela estrada, mas sua pequena figura gradativamente virava fumaça, seguindo flutuando até se perder de vista. Os dois estavam com medo e sozinhos, novamente.
v
— Ellória! Vosso nome não possui acento no
“o”, mas exclamo assim para enfatizar. Qual literatura bonita e bela a que
estamos a recontar! Escrever nos é muito envolvente...
— Hey, vamos evitar “nos é”, parece uma
construção mal formulada. Agora... vamos com os passarinhos e não percamos o
foco. Creio que me falaste certa vez que tua parenta se orientava por um casco
velho de tartaruga... E disseste que talvez seja justamente por causa da busca
de Gislana que hoje tartarugas têm em seus cascos desenhos geométricos que
lembram mapas. — E parou um pouco para rir e jocosamente fazer um cafuné no
homem. — Com isso o senso de direção de tua linhagem segue novamente em
explicação.
— Também desconheço a tradução certa sobre
qual entidade possa ter sido a guia, e... eu não sei qual a semelhança entre
quelônios e ornitídeos. Deve ser porque o último termo nos faz pensar em
‘ornitorrinco’, que é uma criatura com bico que rasteja. Uma coisa que eu não
sei. ...Mas, só sei que foi assim.
— Não sabes tu, nem nunca saberás. Tal
como acreditamos na preguiçosa da outro dia a qual Hermes veio tirar
satisfação, e, enraivecido, jogou uma casa em cima da mulher. Lendas e relatos
são assim mesmo: perdem-se com o vento. Ou, para contextualizarmos mais aqui,
caminham ao galope do tempo. Iria usar “perdem-se” de novo, mas achei esse
verbo mais legal. — E falou aquela última frase em tom só para si, mas o
companheiro a ouviu, e habilmente continuou:
— Qual rima rica esses dois parecidos
termos que nos fazem muito pensar sobre nossa e alheias existências!
Alegrai-te, querida e cara esposa e consorte! Apesar de o predicado não vir
gramaticalmente correto, certo estou de que nossa voz e a tal odisseia (sem
acento no ditongo aberto agora, o que acho ainda esquisito) serão sobremaneira
ouvidas e vivas se cristalizarão nos anais da História! Continuaremos, pois, aos
trotares do cavalo e aos piares dos pássaros. Emitirão sons audíveis como o
gato?
— Não. — Elloria foi curta e grossa. Ainda
que depois achou melhor explicar, a fim de defender seu ponto de vista. — Só os
guiarão, calados. Mesmo porque teríamos de descer a padrões biológicos e
encaixar a espécie com o piar certo. Além do mais, a heroína da vez tem um
flauta! Poderemos explorar esse aspecto:
“Gislana e Marcha Torta, decididos e
alinhados, partiram, guiando-se pelas aves que ali voavam alto sobre suas
cabeças.
(...)”
— Quais descrições mais vívidas e
copiosas! Está... bem... este foi e é o objetivo. Mas, assim como gostei do
bichano e o queria também ter visto (talvez o poderei ver em algum outro dia ou
ocasião), pessoas podem sentir falta de uma despedidazinha, por mais e muito
pequenina que seja, pelo menos de nossa parte. Reiniciaria assim:
“Gislana e Marcha Torta, decididos e agora
mais alinhados, despediram-se do risonho gato ainda que ele não estivesse mais
lá, e partiram orientados pelas aves que ali voavam alto sobre suas cabeças.
(...)”
— 14 palavras diferidoras. Neste caso, deu
certo a troca de “pássaros” por “aves” para não repetir. Mas, desculpe: faço
questão do “e agora mais alinhados” pois a dupla antes do encontro com a
epifania (vamos dizer assim) não tinha uma direção certa. Ademais, tomei a
liberdade de tirar a vírgula, trocando o verbo “guiar” por “orientar”, que para
o público deve parecer mais técnico realmente. — Ele olhou para a coautora semifechando
os olhos e levemente inflando as bochechas. Ela devolveu com um sorriso amarelo
bonito.
— Meu bom homem... Sim, tuas ponderações
são válidas e bem-vindas. Mas, apesar de Gislana ser uma criança, fazê-la
despedir-se “do nada” e falar sozinha pelo contexto pode ser o mesmo que dar
com os burros n’água ou dar bom dia a cavalo (e, no nosso caso, o ditado iria
ficar bem mais evidente). Apesar de o jovial e sonhador espírito, vamos
continuar não dando sorte ao azar nem às críticas...
“Gislana e Marcha Torta, decididos e agora
mais alinhados, partiram orientados pelas aves que ali voavam alto sobre suas
cabeças.
Copiosa e esplêndida biologia eram as
criaturas aladas! Pequenas e ágeis, abençoavam os viajantes com suas belas
penas, as quais cobriam boa parte de seus corpos. Possuíam de três a quatro
caudas longas, e na ponta de cada uma vinha uma natural decoração que
representaria um motivador desafio para qualquer pintor ou artífice. Apesar da
beleza, em tudo se assemelhavam a passeriformes normais. A exceção de suas
cores: pois suas asas, penas, seus bicos e patas revestiam-se em dourado
reluzente. Pigmento que os dois à terra escura estavam sendo ali mesmo
apresentados, e que todo o resto da humanidade também não conhecia. A pequenina
Gislana e o errante Marcha Torta estavam a fazer história, ao passo das rédeas
do destino.
(...)”
— ‘Ao passo das rédeas do destino’! Adorei
tua poética, Elo de Minha Vida. A graça não poderia ter-me agraciado com melhor
orientação... para meus também pequeninos e evasivos passos — proferiu a frase
fazendo uma formal reverência como se ela fosse a rainha de um reino distante. —
Pareceu-me eu a escrever. E, persistindo na sapiência de que um casal não pode
diferir em mais de 80 palavras, engulo meu orgulho e me recolho em mim. Quiçá,
terei outras interjeições ou apontamentos para ti no futuro de nosso texto,
encanto.
— Tu também és meu encanto, amor meu. — Ela ficou estática como só ele a deixava. Depois sorriu, agradecendo. — Oh! Deveras. Para os outros não se perderem nem, talvez, não se distanciarem ao léu de seus objetivos de vida (pois quem se distancia é Gislana), acrescer-nos-eiamos mais o texto. Obrigado, homenzinho! E vamos logo, pois já estou a falar igual a ti, inventando verbos soltos e desconexos:
v
Os pássaros voavam ao céu de acordo com as
passadas dos heróis à terra. O que antes Tom disse foi bem certo, e logo
Elloria e Marcha Torta posicionaram-se divididos, com o medo do desconhecido os
impedindo de prosseguir à estrada justa. Os dois, apesar de seus status
e filosofias diferentes de humano e animal, ajudavam-se mutuamente. Via-se
através das miradas agora mais centradas da criatura quadrúpede um instinto por
seguir adiante, enquanto que na menina de ainda 13 anos persistia uma
inquietação por voltar. A vontade maior da cavaleira, porém, não era de
cultivar aquele sentimento, e o dourado onde deveria ser o céu a fascinava com
seus ecos de esperança.
— É! Aldreda estava certa, afinal... Êpa
Marcha Torta... vamos ficar cara a cara com algo maior do que nós mesmos.
Mas... é só seguir em frente! Com nossos passarinhos e nossas verdades, iremos
conseguir.
Os ornitídeos fixaram-se em um ponto e
agora requeriam suas asas apenas para planar com graciosidade e equilíbrio no
céu. A heroína, que tocava melodias esporádicas a fim de afastar o encontro que
seguindo por ali poderia acontecer, parou de repente como os pássaros. Livre
estava para escapar dali, apesar de que as luzes não mais a acompanhariam e já
desconhecia o caminho de volta. Seu cavalo, por mais que ordenasse andar,
empacou. Bravamente, desceu para averiguar.
Um estrondo como jamais se ouvira assolou
seus ouvidos. Instintivamente, a menina agarrou sua rudimentar flauta de
madeira e ficou estática ali, não por menos, em estado de choque. Marcha Torta
relinchava e grunhia, lembrando-a do risonho gato. Por onde tal biologia se
encontraria numa hora como aquela?
— Não é para menos... é somente uma
criança.
— Que... quem disse isso? — A voz pareceu
vir detrás da pequena Gislana, e ela virou-se depressa. Era... que bom...
apenas Tom e ninguém mais.
O sorriso, ainda que desproporcional e
malicioso, de um jeito frio a reconfortou.
...
Porém, o desproporcional e torto esboço de
meia-lua logo se desvaneceu, e algo mais uniforme e com pontudas escamas foi
crescendo no lugar. As histórias que sobreviviam desde os tempos de Aldreda já não
pareciam ali explicações aleatórias para fenômenos inexplicáveis ou contos
elaborados a fim de fazer as crianças da vila obedecerem nas horas de birra. Os
“príncipes essenciais”, que se concentravam em quatro pelo estrangeiro afora,
eram reais. E a pequena Gislana, com um medo que sempre duvidou uma vez de fato
sentir, encontrou esperança para ficar feliz e com a simplicidade da idade
dizer:
— Olha! É mesmo verdade. Não creio, não creio! Não tenho medo de cara feia...
v
— Estavas lá para saber se foi isso que
ela falou? Ah, claro... O tal gato lhe contou...
— Cara Elloria... Estamos agora
intrincados a redigir esse tomo e as palavras, graças à Marika, já nos fluem
como belos e aconchegantes mananciais. — Teve de parar com as suas mãozinhas
rapidamente à cintura. Nem ele desejaria ser interrompido àquele clímax. — Admito
e reconheço que pessoas de nossa família têm, para cada um de nós, um bordão o
qual lhe é característico... O meu pode ser bem esse: “não creio, não creio”.
São só duas palavrinhas, bem fácil de falar. Mas a heroína, apesar de adquirir
de supetão esse status agora, era uma menina que só conhecia a realidade
da vila. Ela, sim, é uma criança. Mas talvez eu seja realmente mais
“maravilhado com as coisas”. Como os bordões são à nós característicos tal como
purpura de polvo em tecidos reais, falou sim “não tenho medo de cara feia”,
pois como consequência de suas estripulias ouvira deveras essa construção de
sua mãe. E, a propósito, sendo estás como a progenitora de minha antepassada,
fazendo-me ter de ouvir tamanhas repreendas. Vamos, pois, continuar:
Ela não retrucou, pegou a pena, e juntos recomeçaram. Era necessária e interessante a sinergia do casal.
v
— Olá mamãe! Não tenho medo de cara feia...
O animal não era tão “amigável” como o
gato de antes; pelo contrário: tinha cara de poucos amigos. Destoava-se da
escuridão ambiente unicamente por sua face branca, mas aquilo era o único
“sinal” de aparência inofensiva, pois o pensamento antigo acreditava que cores
claras não ofereciam perigo por transmitir paz e conter “luz”.
— Vovó também estava certa sobre o
yin-yang. Não é só porque parece que quer dizer que é bom. — Estava ciente de
que ela era a octaneta da linhagem, mas intercambiava os termos “vó; vovó; e
Aldreda” em tom jocoso, para tirar uma rigidez de formalidade e para assim se
sentir mais perto da antepassada. A fim de amenizar e suavizar o futuro e certo
embate memorável, sua petulância infantil a fez gritar diante do grande monarca
que ali surgia. Correu depressa logo depois, brincando de “esconde-esconde” com
o dragão.
E... sem ver, em sua santa inocência (pois
a ignorância nos protege certas horas), os passarinhos a ajudaram. A elegância
do andar do bicho fazia tudo tremer, e os impactos pareciam tão retumbantes que
gradativamente elevar-se-iam terrenos, não fosse a força das aves douradas em
algum lugar perto dali, emitindo finalmente seus sons distantes e, com isso,
impedindo o chão plano de erguer-se em morros e precipícios irregulares.
—
Perai... e Marcha Torta? — Foi então que lembrou de seu cavalo, e não soube se
seria melhor correr em montaria, pois assim ganharia mais agilidade mas a
grande criatura a poderia ver com maior facilidade, ou se apenas o acompanharia
por terra, podendo se esconder melhor apesar de assim caminhar mais lentamente.
Provavelmente, o momento de coragem do cavalo devia ter acabado e agora ele se
debandava por outras regiões... de mesma forma enegrecidas e sem qualquer tipo
de natureza.
O tempo estava bom para correr, e caso
Gislana caísse (o que realmente acontecia com frequência), engolia o choro, e
bem rápido se levantaria. Não fugiria igual seu cavalo; a chance lhe poderia
escapar.
— Pare de postergar seu progresso, querida
neta. O rio deve seguir seu fluxo, sempre.
E realmente se permitiu uma pausa. E excepcionalmente
boa como era em jogos de criança como aquele, o que se refletia em estratégias
mais adultas de furtividade, tentou localizar o competidor ao longe. Resguardada pelos singelos e simples pássaros dourados que
lá eram como as abençoadas graças de hoje em dia, enfim pode enxergar o que
antes apenas sua imaginação permitia: anexada à branca cabeça, vinha um pescoço
largo e um robusto corpo com duas asas e quatro patas. As escamas lhe abundavam
o rosto, onde dois finos e belos chifres cresciam como se fosse uma reluzente
coroa cuidadosamente lapidada pela natureza. Talvez para agilidade em terra,
não ostentava escamas do pescoço para baixo, ainda que o inteiro contorno de
sua efígie fosse mais gótico e pontiagudo. Aldreda, agora a sucessora sabia, reafirmava
em suas historinhas e canções que ele era o príncipe da Terra, controlando,
pela alcunha alto-explicativa, todas as essências do dito elemento. Será que,
por entre um estrondo e outro, evocaria mais animais (ou, quem sabe, as divinas
aves que lá estavam) para ajudá-lo na disputa?
— Hey!
Sem trapacear, hein!? — E a menina já corria mais esperta, ciente de que não
era apenas mais uma brincadeirinha na vila. A sapiência da avó, ao ensinar que
asas sem o domínio do Ar não conduziriam ao céu, tornou-se sua força para
seguir adiante. Depois de um tempo, ela olhou a ameaça de frente, mas optou
seguir pelos lados.
— Grhhmm... Grhhmm... — e o animal
continuava a emitir seus sons guturais. No que ele deveria estar pensando? E,
mais ainda: o que queria lhe comunicar? Sempre sonhou em sair da vila, e sua
imaginação infantil, atrelada aos relatos e imagens bem vivas de sua
antepassada, faziam-na continuamente se perguntar se “lá fora” existiram outras
culturas, e até mesmo outras gentes e realidades que falariam outras línguas. Não
deveria ser tão mal igual nos contos de Aldreda. A aparência de vilão devia ser
só porque não conhecia as pessoas, as mesmas que por várias razões o teriam
posto na posição de cara mau.
Foi margeando a escuridão que os
distanciava e, se ali existissem tais elevações, ela viria pela montanha, ela
viria!
— Grhh?! Mmm... —Essa charada linguística foi fácil: o “Mmm...” parecia algo como “Afaste-se...”; mas que junto pelo “Grhh?!” pudesse significar “Como ousa?!”, ou, como marca já registrada à família, “Quanta petulância?!”. Contornava o bicho, como um jogo de claro (que simbolizava a alvura do dragão) e escuro (com enxergava tudo ao redor). Em uma distância segura, parou, porém. Talvez por medo, início de uma petrificação, ou ainda...
Príncipe
de escamas e rochas,
ajustemos nosso tom.
Escuta, pois, esta flauta,
Que na inocência vem soar.
Não
ouso portar espada.
Já abandonei o medo e a ambição.
Proponho agora, em meus dedinhos,
uma amistosa relação.
Gislana se viu com os olhos mareados.
Pegou o simplório instrumento musical entre os bolsos e, sem perceber,
aparentemente criou uma linda melodia. O Dragão, com cara ainda de poucos
amigos, alongou seu reptiliano pescoço e localizou a pequena “presa”,
retumbando todo o solo como de costume. A heroína estava curiosa a respeito da
música e as palavras tão assertivas na canção, mas concluiu que elas deveriam
ter surgido assim que o tal monarca branco reverberou aquelas essências.
— Então, vejo que a jovem criança seguiu
os pássaros, e trilhou o caminho. Parabéns, devo dizer. — Os preguiçosos miados
e ronronares eram inconfundíveis, e a garota nem precisou girar o corpo. Quando
deu por si, o gato já estava lá. — Às vezes o que pode ser verdadeiramente mau
e nocivo é apenas uma questão de perspectiva. A sua gente temia o dragão, e
ele, de mesma forma, respondia a esse medo “sem sentido”. Muito bom e válido
você ter pensado esse substantivo terroso com letra maiúscula, isso demonstrou certo
ar de respeito maior para com o príncipe. Alegra-te, a partir de agora ele é
teu amigo!
Em sua infância toda na vila, lera os papiros
e tomos deixados como simbólica herança por Aldreda. De tempos em tempos,
nascia naquela linhagem uma criança com um talento excepcional para alguma arte
(quer fosse humana e comum, como a dança ou o desenho, ou simbólica e menos
natural, como criar artefatos e geringonças que ninguém entendia ou ainda uma
curiosa atitude de falar sozinha). A última vez que tal acaso se manifestou foi
com uma prima distante, a qual dizia que podia enxergar “pontinhos azuis por
aqui e acolá” e por isso foi gentilmente um dia levada por um aldeão para fora
da tranquila vila e nunca mais voltou. Antes dela, somente sua octavó. Ou...
talvez existissem outros com similares dons por aí, mas que pelos contextos e
épocas em que se manifestaram, acharam melhor esconder.
— Mhaamm... Grhh... — Sim, eram ainda
rugidos e complexos sons; mas pelos tons já eram mais amigáveis. Quisera ter a
habilidade de entendê-los, mas apenas o “compasso das feras” já era de grande
ajuda. E, sim, “compasso das feras” seria um bom nome para uma magia
inventada, sorria ela.
Respirou aliviada e continuou, pezinho por
pezinho, a contornar a criatura “estranha”, contudo agora, simpática biologia que
enfim pôde ver como verdade e que estava muito honrada em conhecer pessoalmente.
E, enquanto fazia o reconhecimento, o que antes era cinza e “escondido” ao
redor foi ganhando, também, novas cores e detalhes únicos. Aos seus pés brotou
um extenso gramado com flores de diferentes tamanhos e características. Mais
além, seguindo o horizonte ela avistou diversas outras criaturas que corriam
soltos pelos prados e campinas. Tudo ali era belo, contudo ela olhou para o
alto, e o grande animal como se não soubesse ergueu a sua cabeça também. Os
planos superiores ainda se conservavam ocultos, e, embora houvesse árvores com
frondosas frontes e galhos bem vivos, não soprava sequer algum vento para os
balançar e renovar assim as esperanças do caminho natural do tempo. Inclusive,
mais próximas a eles, a grama se colocava ali sempre à mesma posição, como em
tela. As aves, apesar de existirem outras a destilarem suas plumas e belezas,
não voavam, e os animais, não emitiam sons nem quando andavam nem quando
corriam tranquilos por aí.
— Ah, que cores harmônicas! Que ambiente
esplêndido! — O gato, apesar de não ser um felino comum iguais aqueles que se
veem por aí, contornava graciosamente as pernas de Gislana como qualquer
bichano normal faria. Ele disse o veredito: — Aonde você vai agora? Ora, a
criança pode continuar a seguir os pássaros, ou voltar para a segurança de sua
pacata vila. Diga-me: qual será a harmonia da melodia que na tua mente ecoa?!
Qual será a voz que a ti canta e não dá pra resistir?! Humm... é isso ai! Onde
você for, vá com todo o coração. — E assim, Tom sumiu mais uma vez. Foram
palavras bonitas e polidas para um simples animal de quatro patas.
Enxugou as lágrimas da momentânea e
epifânica emoção, e pelos prados e campinas verdejantes
ela foi. Infelizmente, Marcha Torta ainda não tinha voltado, mas a heroína
mantinha a esperança de em algum lugar ouvi-lo relinchar. A criatura que se
destacava ali era o amedrontador e grandioso Dragão da Terra, mas que a pequena
criança resolveu chamá-lo de Príncipe Terroso ou simplesmente Terroso porque
agora já lhe considerava um amigo.
Isso poderia ser uma afronta àquela
alteza, mas ela não pronunciou o nome, só pensou. A simpática criatura, porém,
abaixou a cauda e agachou como em postura de gato para caçar. A menina, ainda
com receio, claro, foi margeando o dragão até chegar mais próxima à sua cabeça,
a fim de primeiramente o olhar no fundo dos olhos. Ela seria apresentada à dita
cor e textura logo depois, mas os seus espelhos da alma eram marrons escuros, concordando
com seu particular aspecto elemental. Fora justamente por causa da alcunha
“espelhos da alma” que Gislana procurou por aquilo em Terroso, para reforçar a
já existente conexão mental entre eles. Parou, respirou fundo novamente, e
optou por não fazer carinho logo em primeira instância à face do animal, pois,
uma vez que seu cavalo não gostava disso, talvez o outro amigo também não
aprovaria. Manteve-se de lodo, em mesma postura do monarca animal, e unicamente
estendeu uma das mãos, cuidando-se para que o gesto fosse totalmente visível
àqueles grandes olhos.
Com o pescoço esticado à frente, Terroso
tocou os dedinhos de Gislana com a língua, num gesto calmo e curioso. A cena a
lembrou do primeiro reconhecimento entre o cavalo Marcha Torta e ela. O amigo
tinha um temperamento quase único e distintivo: assim como o nome, rumava para
outras direções com facilidade, segundo lógicas próprias, e não se aproximava
de qualquer uma ao contrário do que sua inofensiva e hilária alcunha poderia
indicar. Restava saber se o dragão da terra seria de mesma forma tão amável
assim.
Ele piscava seus amedrontadores olhos...
mas Gislana não sabia se sorria ou se fugia. No entanto, estava lá, e mesmo que
não lhe impedissem mais as barreiras invisíveis, não pretendia retornar. Fechou
os olhos, pois assim não via mais nada e isso ajudava a pensar que o perigo
tinha magicamente ido embora. Mas o animal à frente parou por um instante,
soltou uma última brisa pelas narinas e, abrindo a enorme boca, mordeu suas
vestes. Com o pescoço reerguido, em questão de segundos, a pequena humana já se
punha ao seu flanco — colocada ali com gentileza pelos movimentos destros do
dragão.
E... eles voaram, voaram; subiram,
subiram. Claro, não o verbo “voar” propriamente dito, pois asas não conduziriam
ao céu sem domínios de Ar, mas pelos chutes e força do sagrado príncipe, foram
por onde foram. Entre montes e planaltos que reais se elevaram, eles iam pelas
novas montanhas, eles iam. Os pássaros os seguiram acelerados, mas era
ligeiramente um tanto quanto injusto competir com um gigante colossal. A
criança viu o dragão sorrir.
Chegaram depressa ao próximo objetivo. Era
o Príncipe do Ar, e a heroína, nem bem descendo de sua nova montaria, batizou-o
de Dorminhoco, pois estava dormindo um sono pesado, tão pesado como seu corpo.
Resguardada pelo atípico guarda-costas,
sentiu mais coragem para aproximar-se mais da atual fera. O bicho ainda
repousava, tal como se um outro animal estivesse entoando uma canção para
fazê-lo dormir, e assim a petulante humana sentia mais e mais confiança para
avançar. E sua inocência a fez chegar tão perto, que agora podia tocar a
barriga do animal. Terroso, porém, acompanhava tudo de longe.
Pobre Gislana... Todo o cuidado que tivera
com a ameaça anterior de uma hora para a outra virou fumaça como o gato. Na
certa, não sabia que jamais deveria fazer cócegas em dragões adormecidos...
Ele acordou! E o outro nobre que observava
celeremente fez crescer aos pés da nova amiga uma torre de pedra que a protegeu
de golpes vindo das quatro direções.
Gislana olhou para cima, pois o poder
erguera um momento “sem tampa”. Porém, era um retângulo vertical comprido, e a
“prisioneira” não conseguia ver o que acontecia ao exterior.
— Será que eles estão brigando? Por favor, príncipes, parem! Eu sou da paz... — E, nessa hora, a feliz criança fez a única coisa que ela podia fazer àquelas condições: entoou mais uma linda melodia de flauta, apenas modificando algumas palavras:
No Céu a natureza brinca.
Das trevas nasce a luz.
As essências giram e ouvem felizes,
essa velha canção.
Príncipe de brisa e respiro,
ajustemos nosso tom.
Escuta, pois, esta flauta,
Que na inocência vem soar.
Não ouso portar espada.
Já abandonei o medo e a ambição.
Proponho agora, em meus dedinhos,
uma amistosa relação.
O barulho agora pareceu vir daquele exato
ponto, pois novas vidas, vidas, sonhos e esperanças renovaram aqueles humanos
ânimos. Um clarão como jamais visto raiou aos planos superiores, e, a aurora,
enfim libertando-se, anunciou um novo dia. Agora, quem conhecia já podia
prever: era claro que o Sol iria voltar a brilhar
amanhã, mais uma vez, e eles sabiam, junto com todas as demais essências do
Ar.
Contudo, ainda que os astros reis já
existissem ao céu, não irradiariam até o Príncipe do Fogo conceder-lhes
novamente o calor. E a observadora, desde sua “prisão” feita para protegê-la,
tomava nota de tudo em sua mente infantil; enquanto já se elevava e escapava do
cativeiro pelos novos despertares de Dorminhoco.
— Por onde anda Marcha Torta? Vocês são
bons dragões... — sem medo, estendendo as mãos para tocar com cada uma as faces
dos animais, Gislana se punha feliz, por ter na simplicidade conquistado outro
amigo, mas triste por ainda não ouvir o cavalo relinchar. — Ah, se pudéssemos contar as voltas que a vida dará e
todas as estrelas que, agora tenho certeza, a natureza trará...
— Cenário comovente, criança, mas, ecos
distantes e profundos ainda ressoam pelo bosque. — E, ela nem precisou de
novamente girar para saber: era Tom, o gato fumaça. — Alegra-te, valente
Gislana, nada mais belo que o poder das amizades fraternas! E como amimais
guiados por memórias e instinto, não pessoas que correspondem umas às outras apenas
por interesses próprios, eles nunca te abandonarão, esteja onde estiver!
E, dizendo aquilo, o guia risonho sumiu
novamente, implantando dúvidas à heroína: primeiro, quantas gentes existiram no
mundo? (Julgando que seu povo era tão somente uma parte, e dificilmente não
seriam os únicos a perambular os cenários, os quais ela já via serem amplos); Segundo,
todos os animais poderiam dóceis, desde que se encontrasse a amiga chave para
seu coração? E ainda, por terceiro e último, em qual medida seriam os humanos
mesquinhos ao ponto de priorizarem seu único bem-estar? Existem animais e
animais, Tom; assim como existem pessoas e pessoas, Gislana.
Mas não havia tempo para filosofias.
Espaço e clima até havia, pois se colocavam os três em exuberante panorâmica a
observar, junto às nuvens, um vale vasto entrecortado por árvores, que, agora
já balançavam!
Os contornos e efígie do dragão do Ar eram
idênticos à biologia de seu irmão, e a neta de Aldreda aprendia a identificar
similaridades e discrepâncias. Porém, teve bom senso em notar que o novo amigo
ainda parecia cansado, pois voar àquelas distâncias e alturas deveria cansar.
Por isso, a domadora mirim das colossais feras galgou o flanco do príncipe de
terra, e olhou para baixo como quem dissesse “Então, já é hora. Vamos descer?”
Uma vez finalizado o desafio, já estariam livres para realmente voar lá pra
baixo e assim chegar realmente mais rápido. Mas aquelas rotas alternativas eram
de igual maneira divertidas, e o improvável quarteto partiu para outras
aventuras, descendo devagar de plataforma em plataforma, caminhando e cantando
e seguindo a canção.
Eis que pararam diante de grande um lago
que, deveria ser profundo o bastante para abrigar um novo príncipe, pois os dourados
pássaros que os orientavam pousaram sobre um marrom e resiliente tronco de
árvore.
— Essas texturas são diferentes, não é
mesmo, Terroso. — falou, ao mesmo passo em que sentia novamente a grama a fazer
cosquinhas às suas pernas. — Vovó contava de um carvalho em algum lugar que
guardava saberes ancestrais. Certamente, essa madeira deve ser bem resistente à
água, uma vez que essa guardiã anciã se sobressai entre as demais.
Ambos os dragões inclinaram seus pescoços
para baixo, e mantiveram as cabeças junto ao lago. As essências dali, ainda que
molhadas e líquidas fossem, não fluíam normalmente e parecia que algo mais do
que ar era preciso para provocar certas ondinhas ou fazê-las minimamente
balançar. No entanto, o tempo estava bom: brindava-lhes uma manhã clara, onde
os pássaros já piavam no horizonte, as copas e folhas de vários tamanhos das
árvores e dos arbustos evocavam esperança, e os outros animais, das mais diversas
qualidades e elegâncias, corriam soltos como se a vida retornasse lentamente a
respirar!
Reparando no espelho liso e límpido à
frente, era quase que irresistível não olhar para o próprio reflexo e,
apaixonando-se por si mesma, não colocar o rosto sob a água. Assim que Gislana
fez os movimentos, uma bolha de ar começou a crescer desde a ponta de seu
nariz, e rapidamente a envolver a parte de sua cabeça que já estava submersa.
E a heroína soube exatamente o que fazer.
Mergulhou inteiramente, e o príncipe do Ar controlava a tal bolha onde quer que
a destemida criança fosse. Nadar deveria ser como caminhar, e alegrando-se ela
viu que parecia até mais fácil: sentiu seu corpo flutuar com o elemento que já
era fluido àquelas profundidades. Olhava para cima, e a luz esvaia-se
realmente, mas era como... vagar no escuro novamente. E, apesar de agora se ver
sozinha e não ter mais nem a companhia dos dragões, encarou aquilo como um desafio
que só ela poderia fazer, para que seu futuro planeta azul não mais perdesse
aquela luz. E partiu em busca daqueles sonhos profundos, jurando proteger
sempre seus novos amigos.
Porém, era novata ainda na arte da
natação, e errava a perseguir o objetivo.
Logo, o azul do céu se escureceu de vez, e a alegria, na terra, parecia se fenecer. Mas, controlando o medo, a exploradora nadava de braçada, fazendo como antigamente, a pular de plataforma em plataforma. Novamente o princípio de yin-yang ilustrou saberes, e um clarão destoava-se àquela escuridão. Gislana, que não era boba nem nada, logo entrou na brincadeira, e tratou de nadar mais para longe. Estava aflita por usar sua flauta:
No Lago a natureza brinca.
Das trevas nasce a luz.
As essências giram e ouvem felizes,
essa velha canção.
Príncipe de fluidez e umidade,
ajustemos nosso tom.
Escuta, pois, esta flauta,
Que na inocência vem soar.
Não ouso portar espada.
Já abandonei o medo e a ambição.
Proponho agora, em meus dedinhos,
uma amistosa relação.
Esplêndido, o assim rebatizado príncipe da
Água, àquela calmaria parecia de bem com a vida e escutou a melodia como se
estivesse em plateia de taberna ou de teatro. Mas... ela se colocava diante de
um dragão, deveras, e Dorminhoco desde lá de cima rugia com força e
destreza, a fim de criar tempestades e auxiliar à respiração de Gislana, uma
vez que ainda era resguardada pela bolha de ar. Não demorou muito até que, em
um turbilhão, se encontrassem à superfície com o time quase completo.
E não era segredo para ninguém que
rumariam agora para os domínios do fogo, o que assustou como nunca a pobre
Gislana (talvez por estarem se aproximando do clímax final da aventura). Mas, olhando
firmemente para os três dragões e prevendo o calor do Sol e o brilho da Lua que
com certeza os infundiriam, cruzaram longas distâncias, cenários e regiões.
Pois, se ficassem ali só esperando nada começaria, todas as essências e todos
os animais lhes queriam mostrar, que poderiam viver aventuras incríveis, e mais,
bem mais, das que achavam que pudessem superar. Eram tantas as surpresas, não
conseguiam parar; correram lá e acolá, e revezando estavam em todo lugar.
Teriam muito, muitas emoções, e muitos lugares parar ver! Na hora marcada,
prontamente eles lá estavam. Aquela seria a chance, e não podiam desperdiçar.
Ah! Aquele ardente sonho de ganhar, atraia-os ao Fogo, mas não os queimariam. Pois a coragem sentiriam transbordar, com seus sonhos guiados noite adentro. E todos, amigos, enfrentaram... e gritaram bem alto, o máximo que puderam: “pelas Terras Intermédias!”
v
— Pelas Terras intermédias, homem? Ficou
doido?! — Com um olhar inquisidor, mas um tanto admirável pela irreverência e
ousadia, a mulher se levantou da cadeira, afastou-se do autor, e permaneceu à
janela reparando na lua que já surgia em cor de prata,
do alto da montanha verdejante. Não virou seu corpo, mas os antigos rabiscos da
pena do escritor em seu ofício brotavam-lhe também caraminholas que reclamavam
desde a fresta como se fossem personagens vivos. — Primeiro: estamos, sim,
contando uma epopeia, cheia de altos e baixos (para fazer referência aos terrenos
e também às estaturas dos personagens, pensei agora). Tirando, é claro, uma
palavrinha ou outra, é exatamente o que aconteceu; a trama está verídica,
crível, e com potencial para posteriores explicações sobre o porquê coisas são
como são hoje em dia. Mas, atrelado a isso, põe-se o segundo ponto: só nesta
parte final, “brincam” mais de 3.500 palavras! Entendo que com detalhamentos de
cenas, construções de mundo, que realmente aqui, estamos tendo de tirar
minuciosamente leite de pedra, músicas de Gislana, encontro de seres tão
diferentes em amistosa comunhão e tudo mais... isso acresce por demais a obra.
Mas, já nos estamos nessa função quase o dia inteiro. Penso que seria mais
aconselhável...
— Vamos omitir esse encontro com o futuro
príncipe! Será uma maneira de o público interagir com o espetáculo,
continuando-o às suas cabeças e comodidades. Daremos um tempo à coxia, a fim de
também modificarmos o que precisará, e retornaremos depois já com o final. O
que acha, minha cara e nobre esposa e consorte?
— Com sorte, você? — Ela, com ternura, pegou
novamente as mãos do homenzinho, agora, porém, como se fossem dançar uma bela valsa
medieval. Não pela atitude também ousada e fora dos padrões da época, mas é que
a frase o lembrou uma afirmação própria sua. — Sou eu quem tenho sorte de ter
do lado figura tão emotiva, mas que sabe aparar o que não vai bem e está “de
mais por hoje”. Então, fiquemos assim, querido homem. Será, realmente, um risco
ousado e um caminho que pode se bifurcar em imprevisíveis vielas. Mas... a arte
é assim: visa, acima de tudo, o fascínio do ouvinte, sem tirar nem pôr. — E,
arrematou lindamente, como uma coautora apaixonada e criteriosa: — Vamos
afastar os móveis da sala! Com sua magia, abriremos espaço entre os telhados de
palha e admiremos a Lua que hoje está cheia. Deixemos, também, vossa septuavó à
aproximação do dragão, pois “quem parte é Gislana”. Dancemos! Amanhã, tão logo
acordarmos, continuaremos em seu final.
E aquela solitária cabana na floresta encheu-se
de cor e brilho tão certos como os que se fizeram ver nos tempos de outrora. Ao
mirarem para o alto, especialmente o homem se pôs feliz e contente: como um
vigilante guarda-costas, uma colossal e azul efígie de uma gárgula parecia
reforçar os brilhos noturnos, e seu corpo feito em pedra, ainda que imóvel,
sugeria movimento. Aqueles grandes olhos, os mesmos que o expectador ainda se
perguntava sobre o motivo de terem o escolhido, pareciam agora conter um juízo
que ultrapassava eras. A fortuna realmente o sorrira ao engendrar seu destino
com o de Elloria, e talvez por uma linhagem ou aliança antiga comparou o dia da
busca pela chave com a inocência amiga e simplória de sua parente.
Dançaram até tarde da noite, tiveram
sonhos de ouro; e como vaga-lumes que irradiam luz própria, finalizaram o longo
testemunho travestido ora de lenda ora de mito. Apesar de arriscada decisão (será
que eles teriam paciência?), gentilmente abriram o texto para mais
interpretações, criando por aquilo uma interessante e particular pausa
dramática.
E, requerendo uma vida itinerante e feliz,
viraram saltimbancos a espalhar a alegria e a esperança por onde passavam.
Furtivamente a fazer jogos e estratégias de disfarce, eles apareciam e sumiam
como os ventos sazonais, abençoados e escoltados pela gárgula aos céus,
provando que valor e coragem poderiam ser conquistados de outras formas além de
músculos.
Mais ainda, mas sem chateá-los (e agora é
minha voz ao texto): era como se o mundo necessitasse deles para reacender nos
corações esquecidos e sombrios a lembrança de que o encantamento ainda era
possível. Onde surgiam, risos se espalhavam como brasas em palha seca; e onde
partiam, deixavam no ar o sussurro de algo que bom que um dia existiu, e que,
por um momento... existiu eternamente.
E, por fim, a gárgula, sombra azul entre estrelas, os acompanhava tal qual os pássaros guia de eras distantes, sem emitir som algum. Não falava, mas seus grunhidos ocasionais ecoavam de um destino... daqueles que dançam entre o real e o invisível.
v
— E assim termina a saga da heroína, com disciplinas e palavras a seu
ponto. — Os autores e intérpretes estavam exaustos. Como diz
o ditado e nos exemplifica a veracidade dos fatos, servos e patrícios
compareceram, e os cavalos e até comitivas distantes por todo o estacionamento
marcavam presença e odores peculiares. A voz e conselhos da esposa foram super
importantes para preparar o homem, e ele encarava bem o triste fato: jamais
agradariam 100% do público em 100% de suas apresentações totais. No entanto, teve
um dia (que deveria ter sido ainda na primavera, quando a tal história estava
recém-criada), que saíram para comemorar em uma taberna próxima. Arrumando as
trouxas para, igual Gislana, partirem, tiveram grata surpresa de ver uma parte
do público a acompanhá-los.
— Então, é por isso que, em viajem por
aquelas terras vermelhas podemos ver um imenso dragão “adormecido” perto da
fumegante muralha? Quando tenho de ali cruzar vou bem preparado, mas o trajeto
sempre me causa arrepios — disse um homem gordo de cabelos ruivos e estilo de
trança viking. O homem, apesar de ainda incrédulo e confuso, parecia feliz, retrucando
o autor e agora dono da companhia com cordial polidez.
— Sim, isso mesmo. Após a epifania com
Gislana, os príncipes atestaram a existência de outras pessoas boas e de
coração puro. Em último ato, também tiraram sua mesquinhez e compartilharam das
cores e das propriedades de seus elementos com o resto do mundo. Despediram-se
em jeito e ritual dracônico da menina, e uniram-se para formar um único dragão que,
ao seu tempo, controlava tudo do alto e de uma maneira mais equilibrada. — E,
deu uma pausa dramática, mas o clímax já podia ser pressagiado quando ele falou
entre vírgulas “a seu tempo”. Elloria, que estava do lado provando uma
especialidade da casa, parou para admirá-lo como se fosse a primeira vez. —
Seus herdeiros porém, como não mais possuíam para si tais essências, nasceram
pretos, apesar da mesma efígie jovem dos pais. Felizmente, as folhas caídas não incorreram à mesma história do
passado! E hoje os descendentes dos antigos monarcas respeitam os humanos,
participando vez ou outra de seus desafios, e, pela força e regeneração das
espécies dracônicas, motivando os menores em suas conquistas.
— Folgo-me em saber que Marcha Torta
retornou logo após a “queda” do Príncipe do Fogo, ou de Desejo, uma vez
rebatizado pela heroína da história — uma misteriosa figura encapuzada falava
através de sua máscara que lhe cobria toda a frente. A julgar pelas perguntas e
sonoridades das palavras, já devia ser conhecida do homenzinho petulante. — Mas
gostaria que nos falasse mais sobre o cavalo: por onde pastava enquanto a
menina amansava solitária seus dragões? Estaria à coxia com Tom, o gato roxo e misterioso?
— Querida Alcaide! — Ele fez questão de,
assim como Gislana, pensar naquele status como em letra maiúscula. Pessoa
insuportável poderia ser, mas naquele dia em especifico estava especialmente
extasiado. Tanto que levou as mãos à frente e desmascarou sua ex-chefe, atitude
que em outros contextos resultaria em masmorra ou algo pior. — Obrigado pela
amabilidade em vir nos prestigiar! E vejo que trouxe companhia. Meus olhos
sentem-se mareados de felicidade e confiança. — O radiante homem olhou para os
lados e viu mais três ou quatro antigos colegas de trabalho que Déhla
conseguira arrastar para aquele “programa de índio”. Muito provavelmente por
obrigação, pelo menos ainda estavam lá. — Retorno-te a pergunta com outra
indagação: por onde achas que o bom e velho amigo quadrúpede poderia, agora,
estar a relinchar? Talvez o cavalo sentiu medo e partiu para outros caminhos e
capins deveras cedo à empreitada porque no contexto que se fez não tão
certamente se encontrou em sincronia... Dá margem para vocês pensarem, senhoras
e senhores: quais foram as aventuras ou desventuras em série do cavalo Marcha
Torta, e qual fora a encruzilhada que fizera o animal retornar para sua dona?
Lembrem-se, porém, desse ensinamento: ninguém é dono de nada, e todos os rios
devem livremente correr para o mar.
— E, agora conhecendo o mito, — Elloria,
percebendo que o companheiro inflava-se em palavras e era novamente prolixo à
voz, continuou as explicações finais: — reparemos aos terrenos ora planos ora
irregulares por todas essas regiões. Tais particulares contornos e
bem-características atmosferas são vestígios desse tempo distante, de quando os
dragões e outras feras também (por que não?) governavam pelo mundo. — E coroou
de forma linda e com graciosa beleza as seguintes frases, com menção honrosa a
um muito amigo do homenzinho petulante, figura também heroica que no momento
com certeza viajava célere por bandas desconhecidas. — Reminiscências podem
estar contidas nos lendários poderes dragão, dádivas estas que podem ser
concedidas aos humanos valorosos, se forem realmente bons e de coração puro
para que o feitiço possa se fixar tal como a púrpura de polvo em vestes reais.
Talvez seja para relembrar-lhes das trevas de outrora, mas às noites mais
escuras os ventos do leste ressoam as antigas aves douradas, fenômeno conhecido
hoje como hora da graça. Há esperança, até para essa realidade sombria a qual
vivemos.
E com aquilo, o salão teatralmente
emudeceu e apenas os aromas das mesas e cadeiras de madeira se misturavam às
delícias dos quentes e saborosos pratos. Iam e voltavam à cidadezinha e à
estalagem mais vezes, mas priorizavam a nova e inusitada vida circense.
Passadas as explicações “sem sentido ou nexo” de alguém que aqui escreve e
curioso se atém à outras perspectivas, mais uma saga, de agora novos heróis,
chega seu fim; com disciplinas e palavras a seu ponto.