Botando já essa carroça na frente dos bois, obrigado pela audiência! O que lerão hoje pode ser um primeiro capítulo de uma novela, que dei o titulo de "Eu não sei, só sei que foi assim".
Não são capítulos para seguir uma sequência e você encontrará aqui textos independentes (com início, meio e fim no próprio texto) e um material de leitura ágil, que visa explicar algo pelas mais variadas variantes que variam por entre várias variedades. Entretenimento sem compromisso!
Ps: nesse texto em específico você encontrará um linguajar mais coloquial e sem muita rigidez gramatical. Mas, como diz o outro, o importante é comunicar. E "não sei, só sei que foi assim".
O cabrito que virou bode.
Era
junho de 1970 no interior das Minas Gerais, no distrito de São Bernardo das Águas
Verdes, que pertencia ao município de José Olímpio dos Lobos,
onde nem todos possuíam energia elétrica...
-Ernesto,
dispois du sirviço quero que tu vai lá na casa do vizim e pega aquele cabritu
qui u Mário incumendou pra hoje. O rasta-pé vai sê as seis e já qui nois ficamo
de levar a “ceia”, temo que chegá lá cuá minha carruagi com mais o menos uma
hora di anticidência!
-Mais
senhor... ispia o tempo! São Pedro tá bravo hoje, e mesmo assim se já parar de
chover, aquela sua carroça não vai aguentar de lama... a gente pode até demorar
mais no caminho e o cabrito esfriar. Eu acho mió...
-Num
acha nada, quem cocê pensa qui é pra mi dá ordi! Era só o que mi fartava...
chispa, vai arrumá o feno e dá pros cavalo e esteja qui pronto às quatro i meia,
temos que sair às cinco!
Ernesto
saiu em direção ao estábulo para tratar dos cavalos e Josué, seu patrão, ainda
o ficou observando por dez minutos e foi rapidamente para a casa tomar seu
banho. Josué não passava nem perto de ser um “bom patrão”. Era uma pessoa
ranzinza e metódica. Tudo que ele pensava estar errado deveria ser consertado
do jeito dele, ou caso contrário, era capaz de brigar com tudo e todos ao seu
redor. Mário nem queria chamá-lo para a festa, mas resolveu convidá-lo, porque
era final de copa do mundo e como ele era praticamente o único da região que
dispunha de televisão em casa ficou com pena do pobre Josué perder aquele
espetáculo.
Passada
uma hora, Ernesto já estava esperando seu patrão na porteira do sítio...
-Vem
rápido homi de Deus, eu tô com medo da chuva... Será que não é melhor a gente
pegar carona no carro do vizinho?
-Larga
di sê beista sô, a minha possante dá conta di tudo!- Josué bateu de
leve com a mão direita na parte da frente da charrete e um dos nós que
amarravam a lona da parte de traz quase arrebentou -Agora vamo qui
vamo! Vem, ôcê trabalhô muito e deixa qui eu tomo as rédia... Pó discansá.
-Obrigado,
mas acho que não dá porque essa estrada tá perigosa e piora se
chover. Ernesto continuava a falar calmamente ao lado do patrão.-
Vamos fazer o seguinte, o senhor fica olhando o cabrito e deixa qui eu conduzo.
Josué
pensou e repensou por cinco minutos e depois da esperada bronca que o empregado
levou o patrão rapidamente pegou as rédeas da charrete e ela começou a andar.
São
Pedro não dava descanso no céu e Ernesto já matutava como seria uma dificuldade
cruzar aqueles 26 km de chuva e lama com o meio de transporte escolhido. Porém,
agora só pensava em ajudar seu patrão a chegar são e salvo no arraial de
Mário...
O grande
dono da festa já estava impaciente frente à porteira de madeira ao lado do
jacarandá. Já eram quase seis e dez da noite e Josué ainda não tinha chegado.
Sempre
que podia, Mário tentava “levar o título” de fazendeiro mais amigo e
companheiro da região. Já tinha até se candidatado ao cargo de presidente da
Associação de Moradores do Campo, mas por ser uma pessoa meio que ignorante,
todas às vezes perdia para D. Margarida, uma mulher culta, porém simples e de
menos posses.
-Patrão,
não quero te amolar muito não, mas que horas o cabrito irá chegar? O jogo será
as oito e meia, já confirmei pelo aparelho que a gente vê gente em uma caixa de
vidro. Mas se o senhor quer fazer a quadrilha, é melhor andar rápido!
-Por
favor Luiz, me chame só de Mário! Não gosto de sê chamado de
patrão.- ele falou entre risos.- Yerr, vamos preparar a
quadrilha, essa copa deu certim cuá noiti di São João. Sabia que u Josué iria
atrasar cuá encomenda...
Os
dois caminharam em direção ao centro da fazenda onde os convidados já estavam
conversando despreocupadamente ao redor de um palanque coberto com forro azul.
Passados dez minutos, Mário anunciou a quadrilha e rapidamente quatro meninas
já começaram a buscar o par e puxar a grande roda. Dentro de pouco tempo, todos
já estavam dançando.
- A
ponte quebrou!- Maria, uma convidada com vestido de flores e um laço
vermelho no cabelo falou ao alto falante. - Êta forró arretá di bom sô!... Oia
a onça!
-Filha,
não tem onça na quadrilha.- José, o pai de Maria berrou sentado à
mesa do lado da fogueira.- Ah, é mió bebê quentão du qui ouvir essa fia
falando...
-Uai
Pai, agora tem... Nessa quadrilha, se nu tivé trem a gente bota... i cumé qui
ér pessoar?!?
-Éééééééééééééééé!
Distante
do arraial, Josué continuava a brigar com Ernesto pela estrada afora. O patrão
queria sempre bancar o sabichão da historia e somente depois que levou a
charrete pelo caminho errado, deixou seu empregado conduzir um pouco.
-Está
vendo Seu Josué, se o senhor fosse guiando todo o tempo, nunca que íamos chegar
ao arraial a tempo. Além do mais, ispia! A noite já vem chegando e esta estrada
tá um breu. Reza pro seu cavalo ter uma ótima visão no escuro! Ai meu São João,
já são seis e vinte e nóis ainda estamos a 8 km de distância da festa... e o
Tornado, seu cavalo empacou! Pelo menos... qui bom qui a chuva não veio...
-...
Eu num falei cocê qui ela num ia sê beista de dar as caras hoje só pra istragá
as festança do patrão? Para de se perrcupá homi di Deus, a gente vai chegar lá
uma hora!... Ma... mais Ernesto, tu vai passar por aí? Diz que t... tem
assombração!
-Larga
di sê besta, sô! Como num é "beista" que fala não, tem nada disso aqui...
- o empregado agora imitava a fala e os gestos do patrão.- Não foi o sinhô
mesmo que disse istrudia qui essas coisas não existi?- Ernesto falava, enquanto
olhava sarcástica e misteriosamente para Josué. - Alto lá, alto lá, e alto
lá... Se sou eu que tenho medo, por quais cargas d’água você já tá quase
mixando nas calças? Há-há!
-Arrrto
lá digo eu! Impregadinho beista sô... Ouvi um cau...causo que istru...istrudia
a Rosinha ta...tava p...passando por e...es...essas bandas a noite...
-Já
sei... a patroa tava passando e uma das “cabeças fantasma” da estrada começou a
murgir e correr atrás da coitada... – Ernesto mudou repentinamente a voz para
um tom macabro e rouco. – e depois, Rosa nunca mais foi vista...
Há-há-há-há-há!
-Paaaaaaaaaaaaaaara
homi, tá me ass...assussustano cada vez mais! E fala baixo... você não sabi si
os ispíritu tão com rávia de alguém... já eu nem quero saber mais de Rosinha,
eu só não que...quero ir lá p...pra discub...brí. Só sei que foi assim.
Logo
a sua frente, na curva da estrada surgiu uma enorme cabeça branca flutuando
como se fosse uma vaca sem corpo.
-Vixi!
Virgi Maria Pai nosso das Água Verdi - diz Josué apavorado. - Que é isso homi
de Deus? Já ouvi falar em mula sem cabeça, mas vaca sem corpo nem
sabia.
-É
clara a fúria dos espíritos desta estrada, podemos ver pelos seus olhos! - o
outro continuou a brincar com a cara do patrão durante um tempo, depois pegou
uma lanterna na charrete e corajosamente desceu para ver de perto a
“assombração”. - Ah não patrão, a vaca me pegou... - e... iluminou o resto do
animal. - Larga di sê beista o sinhozinho! Seres ruminantes ruminam sempre em
seus caminhos ruminatórios. Li essas frasi elaborada num livru de suspense
certa veis... Sua cara... Vixi digo eu. Vô te ispricá. - e mais uma vez imitou
a voz de Josué. - Estava já tudo escuro e o corpo desse ruminanti é preto, por
isso a cabeça estava flutuando! Ela teria conseguido te impidí de chegar nas
festa, não fosse teu trabalhador responsaver que tá aqui.
O
empregado parou, riu um pouco da cara do patrão e depois voltou para a
charrete. Finalmente o cavalo resolveu andar de novo e os dois ficaram quietos
sem se falar. Mas depois passaram 30 minutos e Josué quebrou o silêncio,
perguntando com voz de menino que se redimia para Ernesto:
-Então
vamos falar agora sobre u “ruminá”, me insina a falar como cês fala. Vamos
lá... Eu rumino... e depois?
-Ô
meu Pai das Águas Verdes, eu mereço esse trem que não sabe nem falar direito. -
e olhando com pena para seu patrão, falou rapidamente. - Só te ensino se tu me
pedir desculpa por tudo.
Os
dois finalmente fizeram as pazes. Ernesto sabia que pela cabeça teimosa de
Josué, aquele momento de calmaria iria durar pouco tempo e resolveu curti-lo ao
máximo.
-Ah,
meu cumpadi Josué... que bom que chegou! Como tem passado Ernesto? Se meu amigo
judiar de você nessa colheita, pode vir trabalhar aqui comigo...
-Sempre
engraçado você, não é Mário? - Josué de repente deu uma cotovelada de leve em
seu empregado. - Sinto muito, mas eu ainda sei como se tratar bem um empregado
da minha pequena propriedadi... E diga lá homi, que horas é o jogo?
Eram
quase oito da noite e todos na fazenda vieram cumprimentar os dois convidados
de uma só vez. Muitos, é claro, de olho no cabrito. Porém como a comida tinha
esfriado com a viagem, Mário mandou um de seus homens a esquentarem no forno a
lenha para depois todos comerem durante o grande espetáculo da noite.
A
hora mais esperada da festança chegou e o anfitrião subitamente fez um sinal
para os sanfoneiros pararem de tocar. Agora todos os convidados se reuniam na
grande sala de estar da fazenda para se maravilharem com aquela “caixa mágica”
por cima da mesinha de madeira.
-É
um, é dois, é três! - o dono da casa ligou o aparelho e algumas pessoas
lacrimejaram os olhos. - Pronto! A magia da T.V agora tá mais pertu di nóis...
Tensão, o jogo começou... vai cabra, pega a bola e faz gol!
-Ô
fia... é muita emoção! - Marta, uma convidada que beirava já os 42 anos, falou
com os olhos molhados para sua filha Janete.
-Que
coisa maravilhosa! Brigado Mário, istrudia quero repô u convite...
-E
será bem vindo Chico! Que bom que gostou.
-Já
tô uma poça d’água, é muito emocionante!
-Para
com isso Viví... se não o seu Zazá também chora...
Margarida,
a mulher “rival” de Mário quando se tratava de eleição para presidente da
Associação de Moradores de Campo, que estava vendo todas aquelas pessoas
maravilhadas pela magia daquele objeto, resolveu falar e tentar esclarecer a
situação:
-Pois
é. É uma maravilha essas novidades da tecnologia que vêm chegando, estou certa,
Mário?
- ...Sei
de ticnologia não, dona. Mas não é a tumada qui eu ponho no buraco e ela liga?
Ticnologia, palavra difícil. Sô homi do povo, né não minha gente!?
-Uai
uai uai... Não Mário, ai meu Deus do céu! - Margarida abaixou um pouco o tom de
voz. - Marinho, achei que você por ter essa fazenda toda e ainda por cima
querer ser presidente da AMC um dia... achei que você sabia que é o satélite
que transmite a imagem das T.V's... Arrr meu Santo Bernardo. Não é mágica
nenhuma, só pura tecnologia!
-Apoiado!
A patroa é intiligente, ela sabe das coisas. – Alice, a única empregada de
Margarida falou ao lado de José, e poucos minutos depois, mais algumas pessoas
resolveram também apoiar a atual presidenta.
-Não...
cê tá errada mulher... Tem satélitu coisa ninhuma!
-Apoiado!
É por isso que eu voto em você. – Josué, seguido por muitos convidados que não
eram tão bem instruídos e gostavam de criar uma boa polêmica, se levantou e
ficou ao lado de Mário.
-Vírrr
sua fidida? O povo tá do meu lado e eu vou falar... se eu digo que não tem satélitu
é porque num tem, ora! Ta veno us pos’ti’luz? Basta um fiapim da
coisinha brilhante que passa dentro deles pra gente podê ver a imagi na
caixa!
-Calma,
não se irrita homem de Deus! Mário, Mário? Não creio... um político ilustre
como você! Como acha que a coisa brilhante desce pelo cabo de luz?
-Tu
qué sabê di uma coisa. - Mário correu vermelho de raiva para perto da mesa onde
ficava a T.V e com um rápido puxão desligou o aparelho.
-Íííííí
gente! A caixa misteriosa apagou pela assombração da vaca! - um senhor de seus
86 anos, que estava mais dormindo do que acordado, exclamou subitamente.
-Repete,
repete na minha cara qui issu é verrrdade! Vai Margarida... bota, põe seu
satélitu aí e “rissuscita” a T.V, vai! - Mário olhava como um galo de briga
para sua rival enquanto Alice comia os últimos doces da festa. - Ô mia fia, sê
não vai pô... eu num deixo... Arrr quekô fiz pra miricê issu, xiiiiiiiiispa!
Vai, vaza daqui de casa e... - Mário olhou ao redor de si e seus olhos pararam
em cada um que ele achava estar errado a respeito do satélite. - Vão embora
daqui cês tudo! Não quero gente qui credida em satélitu mais aqui não!
Margarida, tu pode sê a primeira a ir embora... dispois vai você Alice. Tchau
Pedro, tchau Ana, tchau Crareti... Tem mais cabritu pro cês não!
A
cena foi quase que um arrastão! Mário começou a expulsar mais de um terço dos
convidados.
-Ninguém
vai ver mais jogo coisa ninhuma! Vamo, eu e os meus amigos vamo comer cabritu,
não pudému nus misturá kuéssa gentalha!
E...
finalmente o cabrito chegou à mesa de jantar da fazenda, porém só quem não
tinha sido expulso conseguiu comê-lo e o causo virou notícia.
Davi
Dumont Farace.
Início:
06/07/2011
Final:
09/07/2011